A violência contra os professores do Rio, educação e essência humana

“Apenas a violência pode servir onde reina a violência, e apenas os homens podem servir onde existem homens”. (Bertold Brecht)

            Com estas palavras de Brecht pressinto poder compreender o incompreensível. Primeiro dia do mês de Outubro no Rio de Janeiro, há apenas quatorze dias da comemoração do feriado do dia dos professores, deparo-me com algumas das mais lastimáveis cenas dentre as muitas que temos podido acompanhar desde o início de uma onda de manifestações populares em todo o país e a desmedida repressão policial que sucedeu às mesmas.
            Não sem alguma espécie de prazer interno, temos acompanhado os ataques histéricos da mídia corporativista atônita e incapaz de dar conta da complexidade dos movimentos que ali buscavam tomar corpo. Estabeleceu-se de fato a impossibilidade de reduzir estes conflitos ao âmbito da política partidária; o movimento dos professores do estado tornou este aspecto indiscutível[1]. Algo deste tipo só poderia ser afirmado com base ou numa ignorância quanto a certos princípios da política e da filosofia atuais, ou numa insensibilidade atroz, ou  numa cegueira incurável, ou no cinismo característico dos homens que se apequenam diante do essencial quando ele invade a sua existência fática subitamente.
  Em primeiro lugar, o curioso é que tal posição tem sido insistentemente defendida pelo atual senhor prefeito da cidade olímpica do Rio de Janeiro, o excelentíssimo Eduardo da Costa Paes. Antes de tudo e com relação à minha mais pessoal opinião, creio que caberia aos responsáveis por orientar este senhor em sua carreira política o importante papel de demover de seu íntimo a sensação neurótica de que “todos estão contra ele”. Tal atitude é tão incompatível com o cargo público que este senhor ocupa quanto com sua condição de homem racional e crescido. Soa ridiculamente típico de um adolescente aborrecido a afirmação de que tudo o que o corpo social está procurando expressar se reduz a uma tentativa orquestrada de minar o seu governo legítimo. Não sendo aqui possível decidir se a atitude do prefeito tem mais a ver com sua deficiência cognitiva ou com a sua ausência de caráter, permitir-me-ei aderir às duas hipóteses uma vez que elas não são necessariamente excludentes. Passo então à explanação do sentido em que faço tão desonrosas menções ao administrador da cidade em que nasci, estudei e tenho vivido desde o dia de meu nascimento.
            Há quase dois meses o Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro realiza uma greve legítima em favor de melhorias nas condições de trabalho precárias às quais se encontram atualmente submetidos. Fica evidente que além das medidas de valorização da carreira, os indivíduos aí organizados apresentam propostas pedagógicas e políticas de extrema importância para uma sociedade que, há meses atrás, movida por um afã inclassificável e, por isso mesmo, perigoso, bradava abstratamente por “melhorias na educação e na saúde”. Como era de se esperar, somente os professores foram capazes de nos apresentar a questão de forma precisa, fazendo com que não fosse mais possível simplesmente voltar às obrigações cotidianas com as quais anteriormente nos ocupávamos. De fato, neste entretempo que se estendeu das enormes manifestações ocorridas no centro da cidade, sobretudo entre os dias do mês de junho, e os atuais desdobramentos da greve dos profissionais da educação, este pareceu um perigo eminente. Lembro-me da observação feita à época de que as manifestações ocorridas neste mês haviam adquirido um capital político importante, mas ainda não haviam encontrado um meio de canalizar tal capital e isto, em grande parte, pelo caráter espontâneo de tais manifestações e a diversidade de reivindicações que elas puderam comportar. Parecíamos estar diante de um problema grego: como reconduzir a disparidade das vozes presentes nas manifestações nacionais à unidade da insatisfação popular com as formas de exercício do poder do Estado e o mais absoluto descaso do mesmo com relação às necessidades básicas dos homens e mulheres brasileiros? Pois bem, com a compaixão que lhes é própria, os professores puseram suas vidas a serviço da clarificação deste estado de coisas de tal modo que agora podemos encarar o problema de uma forma totalmente diversa e muito mais profunda do que antes conseguíamos fazê-lo. 
            A primeira questão incontornável diz respeito à possibilidade de sucumbir frente ao emaranhado de informações e imagens que brotam instantaneamente de todos esses acontecimentos e a partir dos quais os brasileiros ausentes das ruas nos locais e momentos em que tais conflitos atingem seu auge procuram reconstruí-los e assim interpretá-los. A amplitude desta questão revela, por exemplo, que no seio de uma manifestação supostamente corporativista como o poderia ser uma greve sindicalista estão implicados problemas tais como o da perda do domínio sobre as técnicas da imagem por empresas privadas da comunicação e suas ideologias veladas. Com uma câmera na mão e o peito inflado de coragem, a juventude, alimentada pelas contradições oriundas de um profundo processo de transformações globais, vai às ruas e documenta suas próprias experiências na resistência, passando a ter assim igual poder de discurso com relação ao estado e às grandes corporações jornalísticas e midiáticas. Já está claro que a internet traz consigo possibilidades que demonstraram na prática o surgimento novos tipos de poderes horizontais.
            No caso específico das manifestações brasileiras, a internet tem funcionado como um veículo imprescindível para fazer audíveis as vozes historicamente oprimidas que não têm lugar nem na grande mídia, por conta de sua subserviência à lógica de mercado e nem na academia, onde somente tendo a cabeça separada do corpo é possível sobreviver e receber algum reconhecimento ou, ainda pior, onde se é engolido pela mais absoluta indiferença dos intelectuais brasileiros com relação às reais demandas da sociedade civil; demandas estas oriundas de um processo histórico complicado e conflituoso, comumente disfarçado pelos jornais e programas de televisão por detrás da invenção da ideia de um povo receptivo, pacífico e sempre pronto para festejar a própria desgraça. Certamente, as empresas que investiram pesado na venda desta imagem ao mundo através da divulgação dos grandes eventos esportivos que serão sediados na cidade olham incrédulas para a desconstrução prática desta imagem tão fantasiosa quanto lucrativa. Não é esse o povo que marcha bravamente contra as bombas de gás lacrimogênio e as enxurradas de balas de borracha lançadas pelos policiais militares a escancarar ao mundo sua mais completa insanidade e incapacidade de portar qualquer tipo de armamento, bem como de exercer qualquer função construtiva no interior da sociedade. O papel da polícia é hoje muito claro, defender aos interesses de uma elite que cresceu acostumada à necessidade de ser bandida. O povo sabe que não pode esperar nenhum lampejo de boa consciência moral dos descendentes da última elite a abolir a escravidão; eles nasceram bandidos, como seus avós, não sabem o valor do sangue de uma vida humana, não conhecem o cheiro do Brasil de fato, vivem a se esconder das mazelas por eles mesmos causadas entre viagens e risos de escárnio.
            Esta polícia foi a que hoje vi a defender criminosos e violentar educadores, professores e funcionários das escolas sucateadas de seus próprios filhos, profissionais do mesmo Estado, tão desvalorizados quanto estes em que batem com uma raiva que não possuem, com os braços brutalizados pela máquina de triturar pobres agora sob o comando do senhor governador Sérgio Cabral Filho cujo pai, a esta altura, chora de vergonha diante do fracasso na instrução intelectual e moral de seu rebento. Policiais descontrolados, desesperados, despreparados e armados, com uma ideia tão fascista a lhes guiar que a aproximação entre eles e os soldados de Hitler, feita de cima de um palanque por um companheiro educador, não são, em nada, hiperbólicas. Provavelmente inspirado pela abordagem de Hannah Arendt o colega dizia que “os soldados de Hitler também seguiam ordens, vocês vão os eximir de culpa por isso?”. Ali ele bradava pela responsabilidade individual de cada um daqueles homens fardados a enfiar cassetetes em professores desarmados, em jovens mascarados a segurar tapumes e fazer escudo com os próprios corpos, as próprias paixões, os próprios sonhos. Se havia alguma dúvida quanto ao poder transformador de uma geração, creio que ele precisa estar agora inteiramente desfeito. No Brasil, nem mesmo os vinte e um anos da ditadura e seu domínio sobre o projeto pedagógico nacional, nesta ocasião voltado para a alienação intelectual da massa brasileira e o predomínio da direita sanguinária a querer colonialismos eternos, foram suficientes para transformas hordas de jovens mestiços em ovelhas de rebanho e continuadores do cunhadismo. Estes não são os brasileiros que o mundo quer ver, a oferecer suas mulheres, suas casas e comidas, suas festas e paixões, sua fé e sua arte a preço de miçangas e espelhos, estes são os brasileiros de fato, os nascidos na ninguendade somente para resistir. Eles não são os verdadeiros bandidos, como não o eram os quilombolas, ainda que a lei da época não assim interpretasse.
            Estes senhores Eduardo Paes e Sérgio Cabral podem descansar tranquilos, pois hão de possuir eternamente um lugar especial no imaginário da mitologia brasileira. Com base em suas atitudes e em suas caras de pau construiremos mitos morais para educar nossas crianças para a guerra, como sempre fizeram os Tubinambás. O que os profissionais da educação estão fazendo nas ruas não é nada além de seu ofício. Eles estão ali a apanhar para ensinar a seus alunos e à sociedade civil hipócrita com quanto sangue faremos o Brasil de fato, o Brasil que queremos, o que insistentemente tem sido violentado pela burrice congênita desta elite assassina apenas para que seus privilégios sejam mantidos. Quantas mães brasileiras ainda precisarão chorar as dores destas injustiças? Quantos discursos óbvios precisarão ser feitos na relutância contra a dor, como estes que ouvi das colegas massacradas pela polícia ontem no centro da cidade? O erro político mais comumente praticado ao longo da história foi, certamente, o de subestimar o inimigo. É aí que creio termos os elementos para consumar definitivamente a derrocada deste império financeiro que vem destruindo a minha cidade, a sua alegria e a sua identidade ao longo dos últimos anos. Além do mais, é preciso observar o que estes senhores estão fazendo contra si mesmos, uma vez que "A tortura é uma invenção maravilhosa e absolutamente segura para causar a perda de um inocente." (Jean de La Bruyère).
  A mídia continua cega a culpar vândalos que destroem lixeiras, agências de banco e pontos de ônibus. Será que não chegou às redações da Rede Globo um vídeo onde um policial infiltrado provoca a primeira quebradeira do dia para forçar a explosão do confronto? (E este não foi o primeiro que pudemos ver desde junho). Bom, o fato é que tais imagens chegaram até mim pela democratização da informação e, diante delas, me sinto impossibilitada de dar qualquer credibilidade a este jornalismo sem vergonha. Vejo crescer o meu dever moral em demarcar a legitimidade destes atos de reação, sem os quais todos os danos causados pela violência policial poderiam ter sido ainda mais trágicos do que até agora o foram. Os acontecimentos são distorcidos de tal forma que fica difícil crer que a Rede Globo se refere mesmo às consequências da inaceitável interdição do acesso do povo ao parlamento municipal para acompanhar uma votação diretamente relacionada às suas vidas, aos seus planos e sonhos para o futuro. Entramos agora definitivamente na era pós-Marinho. Ou a Rede Globo se contenta em fazer novelas que falem da favela e que divirtam o povo (pois ninguém aguenta mais essas madames lânguidas do Leblon a serem traídas e planejarem vingancinhas) ou fecham suas portas, pois comandar as cabeças pensantes dos rappers, dos artistas de rua, dos trabalhadores, dos educadores, dos índios, da periferia, da baixada, da internet; isto eles já não conseguem.
  No interior de tantas cenas tristes, uma delas me causou uma impressão permanente. Um policial, questionado gentilmente por uma profissional da educação que dizia “eu falo com você e a impressão que eu tenho é que eu não estou falando com um ser humano”, assim a responde “eu não sou humano não”. Mal sabe ele que ali ele condensa a essência do acontecimento, aqui há algo muito mais do que uma mera resposta retórica e malcriada. Ele não é mesmo um ser humano, daí retomo a frase com que iniciei este texto:  “Apenas a violência pode servir onde reina a violência, e apenas os homens podem servir onde existem homens”. O que este senhor, cujo destino eu lamento, precisou experimentar para estar ali realizando este trabalho não é menos do que a completa interdição de seu caráter humano. É preciso ser mal, insensível, cruel, violento, uma besta completa. Quem inventou que era assim que deveríamos fabricar profissionais para proteger a população? Isto é uma insanidade! Quem colocou isto na cabeça deste moço? Rapaz, você é sim um ser humano e, como tal, não deveria se ausentar de sua responsabilidade por seus atos e escolhas ideológicas e nem responder tão mal a uma professora. Duas vítimas se enfrentando, face a face, sob os olhos a escorrer sangue de dois covardes a lhes legitimar o confronto. Dois irresponsáveis esses senhores que agora ocupam cargos que não possuem a menor habilidade para exercer. Lembro-me inevitavelmente da República de Platão e da consideração do homem mau como alguém que possui poder e o utiliza em causa própria. Eis então aí a essência do mal nestes dois senhores e a banalidade do mal neste policial a negar sua condição humana. Diante disto a voz calada das religiões a aceitar a degradação moral e física de nossa cidade, dos jornalistas a se arrogarem a tarefa de intelectuais sem nem conseguir compreender o que se passa nestes momentos cruciais (talvez por falta de um estudo teórico mais consistente), de uma parcela da classe média a preferir diversões efêmeras e dos empresários a sugar dinheiro de tudo isto tranquilos em suas mansões e helicópteros.
  Somente uma significativa melhoria na educação feita com base nos interesses de quem ali está, dos profissionais e das comunidades que acolhem as crianças e as fazem olhar para um futuro que lhes é diariamente negado pode provocar qualquer alteração, ainda que mínima, nesta situação. A desvalorização da educação não atinge apenas as vítimas mais óbvias, a quem a assistência urge, os jovens nas periferias, os trabalhadores, os profissionais que agora conduzem esta greve, ela atinge também a elite que, burra, não consegue olhar um palmo acima de sua taça de champagne, atinge a classe média calada a tornando refém de seus próprios interesses medíocres, atinge os empresários a não lhes mostrar que eles não devem ser tão cínicos a ponto de fingirem que não precisam participar destes conflitos. Isto por que a educação não é isto que serve para aumentar salários e criar mão-de-obra como está convencida a senhora Cláudia Costim, a educação não é  algo que se possa medir com números forjados e estatísticas. Já está claro que esta distorção na essência da educação provoca necessariamente uma distorção na essência humana.
  Por isso, hoje tenho claro em mim, a luta do professores não é por melhores salários e muito menos para derrubar um prefeito por conta de questões partidárias e regionais, ela é uma luta para que possamos reencontrar a nossa essência. Sem que isto seja feito, palavras como liberdade, democracia, política, comunidade, outrora tão importantes na compreensão de nosso lugar na efêmera existência, continuarão sendo só moedas sujas a circular pelas bocas de assassinos profissionais, pagos com o nosso dinheiro para nos massacrar as vidas. Essas palavras precisam ser reconduzidas ao seu poder originário e os professores, como heróis, tomam agora esta tarefa para si. É isto que eles estão fazendo: educando, criando e resgatando aquilo que ainda conseguimos reter de nós mesmos. Sem eles, deixaremos todos de sermos humanos.
  
1 É importante notar, entretanto, que isto não significa que o movimento foi apartidário ou que deveria assumir este caráter em seu íntimo. Os partidos devem necessariamente fazer parte deste rearticulação política  que clamam as vozes populares, mas é preciso compreender claramente os limites de seu âmbito de abrangência e a sua incapacidade de funcionar aqui como fonte primordial de categorias de análise dos acontecimentos. 
po Roberta Cassiano

Postar um comentário

0 Comentários