Viação Acari é apenas um elo da crise da Mobilidade Urbana

A cidade do Rio de Janeiro foi impactada ontem com a notícia do fechamento de mais uma empresa de ônibus. A Viação Acari pertencente ao consórcio Inter-Norte decretou falência, deixando a incógnita sobre o futuro de suas linhas e de seus trabalhadores.

A falência dos sistemas rodoviaristas na cidade refletem por sua vez o complexo emaranhado da política de mobilidade desta cidade, fruto de longa data. O texto por óbvio não tem a pretensão de responder a tudo, mas de dar pinceladas em alguns elementos. Entre eles iniciamos dizendo que estamos em uma cidade complexa em termos de traçado urbano. Se por um lado parte pequena dela sempre recebeu melhoramentos ou projetos que permitiram um traçado planejado, uma parte imensa da cidade definiu seu sistema viário por colagens de loteamentos.


Cruzamento das ruas Dias da Cruz, Fábio da Luz  Souza Aguiar

Não é incomum por exemplo nós vermos ruas da cidade que sentimos que deveriam ser contínuas e não são. Assim também, é bem comum vermos bairros inteiros com traçados que parecem não ter certa racionalidade. Um exemplo disso pode ser notado comparando bairros vizinhos como Bento Ribeiro e Marechal Hermes como na ilustração abaixo.

Bairros de Marechal Hermes e Bento Ribeiro

É possível ver com clareza que em Marechal há um projeto inicial que visa uma linha vinda da estação criando quadras em vias ortogonais, com direito a praças pontuando a centralidade, e este raciocínio de ortogonalidade se espelha em boa parte do bairro, enquanto em Bento Ribeiro vemos ruas e quadras dispostas em formas mais livres, provavelmente resultado de diversos processos distintos de abertura de lotes e ruas.

Esta cidade complexa por sua vez não se pôs a planejar um sistema complexo que fosse capaz de responder as inúmeras peculiaridades que conformam o nosso tecido urbano de maneira a integrar toda a população dando-lhes o direito pleno de ir e vir com qualidade. Esta é uma das chaves estruturais do problema. Se num dado tempo, o sistema ferroviarista (bondes e trens) responderam bem e impulsionaram um já existente processo de ocupação suburbana da cidade, o lobby rodoviarista implementou a predominância deste sobre o poder dos trilhos, durante anos o resultado foi o desmonte dos bondes, o sucateamento dos trens e o pouquíssimo avanço do sistema metroviário.

Durante anos, os ônibus foram o principal meio de transporte da população carioca (em especial a suburbana). Apesar de não atuarem em massa como os trens, o ônibus permitia ligações de curta, média e longa distancia na cidade, além de dar mais capilaridade bairro a bairro. Quem não tem uma linha de estimação que dá voltas e mais voltas como um 940 por exemplo (que chega a passar duas vezes no mesmo ponto em uma mesma viagem)?

Porém os anos de hegemonia deste modal, embasados em articulação política e lobby de donos de empresas com políticos não favoreceu o próprio sistema, que se sucateou pelo comodismo. Quem nunca pegou um 910 sem parafusos, com o vidro imundo e com a companhia de baratas? Não é atoa que as vans e kombis, mesmo ilegais conseguem se manter atrativas e competitivas frente aos ônibus, mesmo com manutenção tão precária (ou mais) quanto os mesmos.

A mentalidade do período pré-olimpico carioca modificou alguns raciocínios, mas não a estrutura dos transportes. O BRT foi vendido como o grande novidade modal para os subúrbios e a reorganização da gestão das linhas em grandes consórcios de empresas se foi uma tentativa de melhorar a economia destas detentoras do controle do sistema de transportes rodoviários equivocou-se. A política de modais implementada a partir de 2015 gerou mais segregação, por criar mais baldeações entre ônibus, aumentando o tempo de viagem e o desconforto de muitos passageiros. O que ambos os movimentos não foram capazes de prever, é que a roda do tempo já estava passando e o ciclo vicioso que as empresas construíram estava no limiar de não responder mais às necessidades da cidade sem dar sinais de colapso.

Muitas linhas lucrativas para as empresas foram fatiadas com a reorganização dos serviços consorciados, tanto o BRT que eliminou inúmeras linhas de ônibus, quanto o fatiamento e linhas que faziam conexão direta norte-sul (que agora passariam a operar nos corredores norte-centro com um ônibus e centro-sul com outro) não trouxeram o lucro almejado, além de dificultar o acesso da AP3 a AP2 (curiosamente a Viação Acari tem duas linhas que mantém esta conexão). Importante salientar que nesta mesma época, bairros como Cascadura, que atuavam como uma importante junção se viu esvaziado com o desmantelamento das inúmeras linhas em favorecimento do BRT.

mapas dos donos da Viação Acari.


Quando vemos as rotas das linhas da Viação Acari, notamos como elas hoje estão pouco racionais, muitos trechos da viagem as linhas praticamente são as mesmas, em diversos casos são trechos facilmente atendidos por transporte ferroviário. Provavelmente o que temos hoje são rudimentos e vestígios de inúmeros recortes e reduções de cidade.


A Viação Acari seguiu o mesmo ciclo vicioso que outras empresas que faliram no mercado. Não conseguindo manter padrão de horário, de qualidade dos transportes, tento linhas que praticamente competem entre si por trechos imensos da cidade, com CEOs e donos que gastam muito mais energia em negócios e lobbys com prefeituras e vereanças do que investindo na própria empresa. Empresas de ônibus urbanos operam muito mais em função da necessidade extrema do passageiro do que movimentando o interesse ou desejo deste passageiro, desta forma conseguem maximizar seu lucro oferecendo o mínimo necessário ao passageiro. Não dá para reclamarem de uber ou van, ou quaisquer meios de transporte, se a empresa não for capaz de colocar suas rotas para funcionar com comodidade, segurança e pontualidade.

Assim, com um mix de problemas e diante de uma pandemia que modificou completamente a forma como vivenciamos a cidade, empresas como a Viação Acari tenderão a não conseguir sustentar seu funcionamento pelo acúmulo de má gestão e falta de planejamento no setor. Não há meio viável de investir em mobilidade urbana sem pensá-la dentro de um plano maior que foque no bem estar e qualidade de vida dos usuários. O problema do Rio de Janeiro é grave, com estrutura equivocada, que ao invés de fomentar integração, compreender e atuar na real necessidade do cidadão, fomenta a segregação econômica e social do morador do Rio (e região metropolitana em geral) garantindo a margem de lucro na entrega do mínimo necessário para o trabalhador.

Como a chantagem que sustentava o serviço baseada na exploração do trabalho e no medo de perder emprego por conta de atrasos que obrigavam o trabalhador a pegar qualquer transporte que o levasse pro emprego reduziu bruscamente com o aumento do home-office e do desemprego sistêmico, o sistema de ônibus viu reduzido sua maior fonte de coleta de passageiros. Junta essa redução, com a necessidade de mais manutenção na frota que já é antiquada e que parada não gera lucro, o que estava ruim piora.

Basta vermos o nome de um ou dois dos sócios da Viação Acari: Cassiano Antônio Pereira. — Sócio das empresas de ônibus do Grupo Rubamérica, Cassiano Antônio Pereira figura também como representante da Terceiro Tempo Assessoria e Marketing Esportivo, reconhecida oficialmente desde 2005 pela CBF como intermediária na negociação entre clubes e futebolistas. Outro: Valmir Fernandes do Amaral — Sócio em Viação Ponte Coberta, Expresso Nossa Senhora da Glória, Gardel Turismo, entre outros negócios.


Como acontece com a maior parte das falências deste tipo de serviço, quem perderá são os trabalhadores da empresa e a população mais pobre que de alguma forma dependia das linhas e hoje se vê na incógnita de saber se elas serão mantidas ou extintas. Seus donos certamente seguirão por aí, levando os recursos adquiridos nos anos de exploração dos serviços de transporte para outros locais e mantendo suas relações de negócios com os donos da cidade, nada diferente do que é uma família Barata.

Rotas das linhas da Viação Acari saindo dos Subúrbios em direção ao Centro.

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