A necropolítica do talibã e do bolsonarismo

"Solidão e multidão continuarão a ser deveres elementares do poeta do nosso tempo". Pablo Neruda

 

O

 bolsonarismo convoca para o dia 7 de setembro um mobilização para fortalecer a candidatura do Bozo para 2022 e mobilizar a base, o bolsonarismo mobiliza, hoje, o movimento de massas mais radicalizado da sociedade, uma extrema-direita saudosa da ditadura militar que luta contra o avanço dos direitos sociais e políticos das mulheres, dos indígenas, do movimento negro, do movimento LGBTQIA+, que eles identificam como globalitarismo, um movimento que repercute em diversas línguas espalhadas pelo mundo e que, agora, tem no Talibã um aliado “ideológico”, ainda que muitos partidos e coletivos do campo da esquerda brasileira vejam no Talibã uma “força libertadora local contra o imperialismo norte-americano”. Mas, como eu dizia no início no artigo, a radicalização estética e política, hoje, se dá no interior do conservadorismo, um movimento dialético que se confronta com os avanços sociais e políticos (conquistados pelos movimentos sociais em diversas lutas travadas no século XX) definidos pelo devir minoritário que domina o cenário político, ainda que o capitalismo capture constantemente esses direitos, convertendo-os em mercadoria ou segmentos mercadológicos. A extrema-direita, diferente dos partidos institucionais, tanto à esquerda quanto à direita, busca o rompimento e usa o termo revolução como se estivesse discutindo futebol numa mesa de bar. No caso dos partidos tradicionais, que geralmente tendem ao centro, buscando um tipo de conformidade com o sistema vigente, tanto a linguagem quanto o comportamento de seus políticos e muitas vezes de sua própria militância, o discurso “pautado” pela conservação democrática dos costumes, o que no Brasil se dá de acordo com a classe, com o território (a diferença entre a Zona Sul e a Zona Norte do Rio, por exemplo), com a cor da pele ou o fenótipo racial (o país é estruturado por relações sociais, políticas e econômicas neoescravocratas), pela sexualidade dominante (heteronormativa), dentre outros fatores que dominam a cena padrão das relações de poder hegemônicas, ou seja, a democracia no Brasil existe para poucos

O bolsonarismo, assim como o Talibã, é uma “ruptura conservadora”, isto é, Bozo promove insurreições que visam parar alguns avanços nos campos da sexualidade, dos direitos das mulheres, dos povos oprimidos (afrodescendentes, indígenas, etc.), dentre outros direitos conquistados pelos movimentos sociais... E o Talibã, em outro contexto e situação, aproveita uma brecha deixada pelo imperialismo, que “trucidou” o país durante sua ocupação por mais de 20 anos, deixando um rastro de miséria e corrupção endêmicas, para afirmar-se enquanto força hegemônica e salvacionista. E enquanto os bolsonarista pedem o fim do STF (Supremo Tribunal Federal) e do Congresso, os talibãs, através da xaria[1], querem demolir a democracia representativa e suas instituições, e implementar um Estado islâmico, um Emirado Islâmico do Afeganistão.  É impossível comparar os dois movimentos, assim como é impossível comparar qualquer fenômeno ou singularidade se não for para recorrer a similitudes ou semelhanças, ou seja, as coisas nunca são idênticas entre si, mas a partir de uma análise da totalidade que nos envolve podemos comparar os dois fenômenos, e o que é esta totalidade? Alguns traços podem ser encontrados na crise das representações e das instituições que compõem a democracia ocidental, o declínio das grandes narrativas compensado pela ascensão de ideologias, práticas e discursos totalitários (bolsonarismo, talibãs, neoestalinismo, etc.) liberados após anos de uma “sociedade descafeinada” que sempre tendia para o centro. Tal como o período entre guerras no século XX (1919-1937), vivemos um momento de transição onde “os ânimos se acirram e as estruturas se movem de forma instável e imprevisível”.

O bolsonarismo condensado, brilhantemente, em imagem por Ribs.  

O Talibã é a morte e o genocídio em muitos sentidos, a morte da sexualidade, a morte da precária liberdade de expressão que as democracias ocidentais permitem, em termos políticos e estéticos, a morte do pensamento... Uma necropolítica que tem como forma de organização dos corpos a sua mortificação e o controle de sua sexualidade, de seus comportamentos, de suas “ideias” encarnadas, e assim como o bolsonarismo, os talibãs pretendem instituir um tipo de teocracia no fazer político como uma forma de contraposição às democracias ocidentais; no caso do bolsonarismo, essa “democracia” estaria dominada pela “globalização comunista” e logo, deveria ser combatida e reformulada segundos os “verdadeiros valores da família cristã”. 

Hoje em dia, quando a realidade microscópica de um vírus, do Coronavírus e de suas mutações, influem tanto em nossas vidas, tanto que acompanhamos suas variações, letalidade, poder de contágio, algumas pessoas utilizarem o argumento geopolítico do “anti-imperialismo” para justificar as atrocidades do Talibã, uma milícia armada que se autointitula como “nação”, seja pela falta dicotomia plantada pelo discurso que ressuscita a Guerra Fria no cenário mundial, seja pela posição de muitos influencers que defendem o Talibã como um fenômeno de autodeterminação dos povos, um enunciado mentiroso, na medida em que não há uma autodeterminação real dos povos que habitam o território afegão, e sim a imposição de um grupo armado organizado que impõe suas verdades e maneiras de viver de forma unilateral e autoritária, além de covarde, é antiético em todas as suas dimensões: política, econômica, social, existencial... Os talibãs, ou “jovens estudantes”, significado literal de talibã, são, de certa forma e não diretamente como muitos afirmam, um produto da CIA[1], e os mesmos já firmaram acordos multilaterais com as super potências mundiais, USA e China[2], ou seja, aqueles que os veem como um tipo de resistência ao imperialismo não conhecem nem sua história nem seus objetivos. Mas ainda há a possibilidade de resistências e revides imprevistos dos povos autóctones a partir dos tadjiques e pashtuns, na região norte do país, o “indomável Panjshir”, e, para além disso, é preciso criar um movimento de solidariedade mundial para com as mulheres, os ativistas LGBTQIA+, os militantes políticos de esquerda, dentre outros movimentos que hoje enfrentam o Talibã no Afeganistão. Ser, ao mesmo tempo, como disse o poeta chileno, “solidão e multidão”, resistência e criação, ser solitário em sua posição contra a barbárie dos argumentos que justificam a morte na política ou a política da morte, mas encontrar a multidão de vozes que resistem à barbárie num tempo em que viver é uma urgência e a sensibilidade para o outro uma necessidade.  

Vladimir L. Santafé é professor, cineasta, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pós-doutorando em Filosofia pela UERJ.



[1] As armas americanas que possuíam, vinham do famoso programa Reagan para impedir “o avanço do comunismo e garantir a liberdade no mundo”, enquanto o governo paquistanês, através de seu serviço de inteligência, treinava o mesmo Taliban em suas fronteiras com o Afeganistão, além de municia-los com um sistema de inteligência de alta qualidade. (Um cemitério de impérios, uma Esquerda emocionada, um grupo fundamentalista e o novo sikes-picot sendo desenhado); fonte: RIA (Rede de Informações Anarquistas)

 

[2] Para a China, esse cenário da vitória do Taliban não poderia ser mais favorável. O Taliban apoiava até então os movimentos de independência da região de Xinjiang, que historicamente é o local em que habita o povo Uighur; predominantemente muçulmano. O acordo é estratégico. (Um cemitério de impérios, uma Esquerda emocionada, um grupo fundamentalista e o novo sikes-picot sendo desenhado); fonte: RIA (Rede de Informações Anarquistas). 

Grafite de Shamsia Hassani

CARTA ABERTA DA CINEASTA AFEGÃ Sahraa Karimi

 "A todas as comunidades de cinema do mundo e a quem ama filmes e cinema,

 

Meu nome é Sahraa Karimi, diretora de cinema e atual diretora-geral da Afghan Film, a única empresa cinematográfica estatal no Afeganistão, fundada em 1968.

 

Escrevo a você com o coração partido e uma profunda esperança de que possa se juntar a mim na proteção de meu belo povo, especialmente os cineastas do Talibã.

 

Nas últimas semanas, o Talibã conquistou o controle de muitas províncias. Eles massacraram nosso povo, sequestraram muitas crianças, venderam meninas como noivas para seus homens, assassinaram uma mulher por seu traje, torturaram e assassinaram um de nossos amados comediantes, assassinaram um dos nossos poetas e historiadores, assassinaram o chefe da Cultura e dos meios de comunicação do governo, têm assassinado pessoas afiliadas ao governo, enforcaram publicamente alguns dos nossos homens, deslocaram centenas de milhares de famílias.

 

As famílias seguem acampadas em Cabul após fugirem dessas províncias e estão em condições insalubres. Há saques nos acampamentos, e bebês estão morrendo por não terem leite. É uma crise humanitária, mas o mundo está em silêncio. Acostumamo-nos a este silêncio, mas sabemos que não é justo. Sabemos que essa decisão de abandonar nosso povo está errada, e que essa retirada precipitada das tropas americanas é uma traição ao nosso povo e a tudo o que fizemos quando os afegãos venceram a Guerra Fria para o Ocidente.

 

Nosso povo foi esquecido. Agora após vinte anos de ganhos imensos para nosso país, especialmente para nossas gerações mais jovens, tudo pode ser perdido novamente neste abandono.

 

Precisamos de sua voz. A mídia, os governos e as organizações humanitárias mundiais estão convenientemente em silêncio, como se o tal 'acordo de paz' com o Talibã fosse legítimo. Nunca foi legítimo. Reconhecê-lo deu-lhes confiança para voltar ao poder. O Talibã tem brutalizado nosso povo durante todo o processo das negociações. Tudo o que trabalhei muito para construir como cineasta em meu país corre o risco de acabar.

 

Se o Talibã assumir o controle, eles vão banir toda a arte. Eu e outros cineastas podemos ser os próximos em sua lista de alvos. Eles vão tirar os direitos das mulheres: seremos empurrados para as sombras de nossas casas e de nossas vozes, e nossa expressão será abafada no silêncio. Quando o Talibã esteve antes no poder, nenhuma menina frequentava escolas. Desde que o grupo deixara o controle do país, mais de 9 milhões de meninas afegãs se matricularam na escola. Isso é incrível. Herat, a terceira maior cidade que acabou de ser dominada pelo Talibã, tinha quase 50% de mulheres em sua universidade. São ganhos incríveis que o mundo mal conhece. Nessas poucas semanas, porém, o Talibã destruiu muitas escolas, e 2 milhões de meninas foram forçadas a deixar a escola novamente.

 

Não entendo este mundo. Não entendo o silêncio (do mundo). Vou ficar e lutar pelo meu país, mas não posso fazer isso sozinha. Preciso de aliados como você. Ajude-nos a fazer com que o mundo se preocupe com o que está acontecendo conosco.

 

Ajude-nos informando aos meios de comunicação mais importantes de seus países o que está acontecendo aqui no Afeganistão. Sejam nossas vozes fora do Afeganistão. Se o Talibã assumir o controle de Cabul, talvez não tenhamos acesso à internet ou a qualquer ferramenta de comunicação. Por favor, envolva seus cineastas e artistas para nos apoiar e ser nossa voz. Esta guerra não é uma guerra civil. É uma guerra por procuração, é uma guerra imposta. Por favor, compartilhe este fato com sua mídia e escreva sobre nós em suas redes sociais. O mundo não deve virar as costas para nós.

 

Precisamos do seu apoio e da sua voz em nome das mulheres, crianças, artistas e cineastas afegãos. Esse apoio seria a maior ajuda de que precisamos agora.

 

Por favor, ajude-nos a fazer com que este mundo não abandone o Afeganistão. Por favor, ajude-nos antes que o Talibã assuma o controle de Cabul. Temos tão pouco tempo, talvez dias.”



[1]xaria (em árabeشريعةromaniz.: sharīʿah, "legislação"), também grafado xariá,[1] xária,[2] sharia,[3] shariahshari'a ou syariah, é o direito islâmico. Em várias sociedades islâmicas, ao contrário do que ocorre na maioria das sociedades ocidentais, não há separação entre a religião e o direito, todas as leis sendo fundamentadas na religião e baseadas nas escrituras sagradas ou nas opiniões de líderes religiosos. O Alcorão é a mais importante fonte da jurisprudência islâmica, sendo a segunda a Suna (obra que narra a vida e os caminhos do profeta). Não é possível praticar o Islão sem consultar ambos os textos. A partir da Suna, relacionada mas não a mesma, vêm os hádices, as narrações do profeta. Um hádice é uma narração acerca da vida do profeta ou o que ele aprovava - ao passo que a Suna é a sua própria vida em si. Como se disse, as suas principais fontes são o próprio Alcorão e os hádices, mas o ijma, o consenso da comunidade, também se tem aceitado como uma fonte menor. Qiyas, o raciocínio por analogia, foi usado pelos estudiosos da lei e religião islâmica (Mujtahidun) para lidar com situações onde as fontes sagradas não providenciam regras concretas. Algumas práticas incluídas na xaria têm também algumas raízes nos costumes locais (Al-Urf). (Fonte: Wikipedi - https://pt.wikipedia.org/wiki/Xaria)

 

[2] As armas americanas que possuíam, vinham do famoso programa Reagan para impedir “o avanço do comunismo e garantir a liberdade no mundo”, enquanto o governo paquistanês, através de seu serviço de inteligência, treinava o mesmo Taliban em suas fronteiras com o Afeganistão, além de municia-los com um sistema de inteligência de alta qualidade. (Um cemitério de impérios, uma Esquerda emocionada, um grupo fundamentalista e o novo sikes-picot sendo desenhado); fonte: RIA (Rede de Informações Anarquistas)

 

[3] Para a China, esse cenário da vitória do Taliban não poderia ser mais favorável. O Taliban apoiava até então os movimentos de independência da região de Xinjiang, que historicamente é o local em que habita o povo Uighur; predominantemente muçulmano. O acordo é estratégico. (Um cemitério de impérios, uma Esquerda emocionada, um grupo fundamentalista e o novo sikes-picot sendo desenhado); fonte: RIA (Rede de Informações Anarquistas).

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