"...move-se a máquina – a mulher borda ao tear/a verde tela da janela a voz encobre/a roda estanca – ele revém, distância turva/à solidão do quarto as lágrimas são chuva". Li Bai
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screver
é uma arte, não no sentido comum da palavra, mas no sentido de uma techne, uma
técnica em grego que envolve tanto a arte de esculpir pedras quanto a arte de
construir uma casa a partir delas... A escrita é uma forma de conservar o
tempo, nela, absorvemos a vida para além do imediato e atravessamos o presente
percorrendo o passado e o futuro no instante em que “gravamos” a memória em
palavras. Mas para além da escrita há a escritura e essa se faz a partir
de diversos signos, inclusive pela via audiovisual, onde a memória se conserva
nos suportes tecnológicos da época. Em Copacabana, num vídeo caseiro feito por algumas
senhoras de bem da Princesinha do Mar, as moradoras dos prédios art nouveau
do “bairro mais charmoso do Brasil” gritam “mata, mata, tem que matar essa
gente!” Retrato de um Brasil cordial que os livros de sociologia mais saudosos
lembram em suas páginas amareladas, um tipo de ressentimento embalsamado em imagem
e som. Ao invés de estudarmos a cordialidade do brasileiro, deveríamos estudar
a banalidade do mal, a violência genocida estimulada pelo caos social que se
instala na cidade aos “domingos de sol” na praia, no bar, nas famílias... Um
tipo de microfascismo que molda a subjetividade da sociedade brasileira e que,
em momentos de tensão, produz figuras políticas grotescas como Bolsonaro. Há
algo “de podre nesse reino”, nessa cidade, nesse país que está muito além dos
questionamentos de Hamlet sobre o ser e o não ser, ou então o ser social
construído cotidianamente em nossas terras é na verdade um monstro prestes
a explodir ou em vias de explosão, o caso do Bozo e sua familícia que
ameaça com um golpe de estado a cada semana é só um efeito desse Brasil
esgotado, que “não aguenta mais”... Obviamente que os arrastões promovem medo e
violência, mas temos que nos perguntar o porquê deles existirem, eles
não são um fenômeno social isolado, alguns analistas os remetem, de forma
duplamente preconceituosa, aos bailes funk, na maneira como as “galeras” se
organizam nas favelas e periferias da cidade para se divertir e “puxar briga”,
provocar adversários, mas, o mais importante, eles são um reflexo de uma
sociedade desigual que trata o jovem da periferia, principalmente o jovem
negro, como um criminoso. Uma sociedade que trata o funk como crime ou “música
de bandido”, assim como há anos atrás falavam do samba e da capoeira, ou seja,
um efeito do racismo estrutural que banha todos os segmentos da sociedade. É a
banalidade do mal... Como escreveu Foucault, dentro das relações sociais que
firmamos em sociedade e a partir da perspectiva do poder, somos, na maioria das
vezes, criminosos em potencial, mas no caso dos jovens negros moradores de
favela, esse potencial é quase uma certeza para o poder.
Vivemos num país que aplaude quase calado
genocídios cotidianos, vivemos num cemitério indígena, milhões assassinados
pelo colonialismo, num cemitério africanos, milhões de africanos escravizados
torturados e assassinados pela coroa portuguesa e seus capitães hereditários,
somos uma colônia de exportação, dominada pelo agronegócio e pela mineração,
até hoje, um país que não cria condições de existência dignas à grande maioria
de sua população, espalhada pelos guetos e favelas, becos e vielas, como na
música dos Racionais. E em meio ao fascismo das senhoras e senhores recatados,
os cidadãos de bem da sociedade neoescravocratas brasileira, made in Europa,
mais de 170 etnias indígenas pressionam o STF (Supremo Tribunal Federal) para
votar contra o Marco Temporal[1],
PL 490, imposto pelos ruralistas, grileiros, garimpeiros, milicianos e outros
“cidadãos de bem” que apoiam o genocida no poder, Bozo e sua trupe diabólica,
com direito a um batalhão de pastores evangélicos benzidos pelo próprio Satã em
seus momentos de maior inspiração e sadismo. Como lembrou o antropólogo Viveiros
de Castro em seu Twitter, “O marco temporal não será julgado no STF
somente por homens brancos (estruturais), mas por brancos proprietários de
terra. (...) E nem falemos no Congresso Nacional, que abriga uma grande
vaquejada”. Ou seja, estamos novamente imersos nas relações de poder
colonialistas, onde a força das armas dos povos dominantes, além de seus
tentáculos no judiciário, na política institucional e na mídia corporativa,
recursos atuais para “velhos truques” de dominação, impõe um cenário de miséria
e destruição como uma fatalidade, algo irremediável e “socialmente aceitável”. É
impressionante como a grande mídia cala-se diante da maior manifestação indígena
da nossa história.
A luta indígena é a escrita na pele, no
sangue, na materialidade do momento, mas está muito além do imediato, ela se
envolve de séculos, milênios de existência, e de um presente moldado na
convergência entre a permanência da cultura dos povos autóctones e sua
singularidade no mundo contemporâneo em fusão com as novas tecnologias e seus
usos diversos, uma mistura de techne e pachamama, arte telúrica,
que emerge com “as mãos sujas de terra”, imanente em sua própria criação. “Mas
a vida resiste, apesar dos homens de bem”. Não me lembro de quem é a frase,
talvez eu a tenha inventado nesse momento, talvez ela estivesse latente em meu
inconsciente e agora se libertou, agora, nesse momento, nessa sala, com a luz
branca do abajur vermelho ocre cegando os meus olhos, não sei... Eu só sei
sobre o instante, aquele instante em que “a solidão do quarto torna-se lágrima
na chuva”.
Vladimir L. Santafé é professor, cineasta,
doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pós-doutorando em Filosofia pela
UERJ.
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