O neofascismo bolsonarista e suas cores

 

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

 

Fernando Pessoa

 

S

 egundo as últimas informações, no último dia 28 de agosto, durante o 1° Encontro Fraternal de Líderes Evangélicos de Goiás, “Bolsonaro disse que tem três alternativas para o seu futuro: a morte, a prisão ou a vitória”, mais um dia onde a publicidade bolsonarista hegemoniza os meios de comunicação. Uma tática que mobiliza tanto a base do Bozo quanto a oposição liberal e do campo da esquerda. Hoje, dia 07 de setembro, diante das manifestações golpistas financiadas por empresas privadas e dinheiro público, Bolsonaro diz que não acatará nenhuma decisão do STF (Superior Tribunal Federal), que não cumprirá nenhuma decisão jurídica contrária à sua vontade e que está preparando o Conselho da República para preparar uma “intervenção política” de excepcionalidade caso os ataques a ele e aos seus aliados continue; em outras palavras, Bozo está preparando um golpe de Estado.

Composição política do bolsonarismo montada por Ribs. 

“A morte ou a vitória”, um lema fascista que recobre uma forma de fazer política baseada na força e na linha suicidária como objetivo final, o nazismo é o melhor exemplo desse tipo de modelo, em sua propaganda, cartazes, dizeres, tudo levava à morte, a morte era como um deus para os nazistas: a morte dos judeus, das raças não arianas, da “decadência liberal” que enfraqueceu, segundo os nazis, o sangue europeu e permitiu a proliferação dos “valores democráticos e das sexualidades desviantes”. A propaganda nazista, assim como a bolsonarista, têm em comum a noção conspiratória de um esquema global de ataque aos costumes familiares cristãos e seu modo de vida, assim como daquilo que eles chamam de “conspiração comunista”, e ambas se alimentam da caricatura dos seus adversários, no nazismo era o judeu com seu nariz adunco, seus olhos cruéis, sua postura diabólica, no bolsonarismo é o comunista e seu “poder de destruição dos alicerces familiares”, todos inimigos de Deus e do Ocidente. Na propaganda nazista, geralmente vemos uma família loira e sorridente, os semblantes sempre seguros e pacíficos dos pais, o olhar penetrante do soldado com o olhar do menino que o acompanha e lança seu olhar no horizonte de conquistas para a “grande Alemanha”, o 3° Reich, o sorriso cativante e sereno da menina que segura na mão uma flor e uma lata de doações com o símbolo da suástica estampado, as cores são, geralmente, o vermelho, o amarelo, o preto e o branco... O estilo dos desenhos é clássico, greco-romano, mas seus modelos são todos loiros e com fisionomia de indivíduos pertencentes ao norte da Europa... A propaganda nazi trabalha com maniqueísmos tal como os bolsonarista atuais, a ideia de um inimigo global a ser derrotada, um inimigo que está em todos os lugares e em lugar nenhum, ou seja, é preciso estar atento e forte a todo mundo, gerando uma paranoia constante. No caso da propaganda bolsonarista, a caricatura típica da classe média brasileira pulula nas redes, é uma propaganda que carrega toda a breguice dessa classe, não tem o ar épico de algumas propagandas nazis, com exceção da ala nerd dos bolsonarista, que o comparam ao Capitão América e a vários heróis que povoam os games internacionais, geralmente personagens fortes e militarizados, muitos símbolos fálicos, armas, tanques, etc. A propaganda bolsonarista é um misto do “Véio da Havan” com os modelos eleitos pela indústria cultural como símbolos de virilidade e potência, tal como os nazistas da época, com a diferença que Hitler era um pintor frustrados influenciado pelas artes clássicas europeias, formado por elas e defensor da delirante superioridade cultural da Europa, enquanto Bolsonaro é fã do Romero Brito e do estilo militar. Bozo é um típico personagem da classe média brasileira, o ídolo de vários “tios do Pavê” e “tias do Zap”, mas também do jovem reacionário ressentido com o feminismo e o avanço dos movimentos sociais. Bolsonaro, na verdade, encarna a vontade deles, uma vontade quase universal de ver o mundo à sua imagem e semelhança. É como se o mundo se resumisse a um “almoço de domingo” em família. Uma linha suicidária impulsionada pela morte, mas não a pulsão de morte, ou a dissolução do eu, e sim a morte da vida... As cores do bolsonarismo estão além do verde e amarelo adotado pelos seus manifestantes, elas também são atravessadas pelos tons acinzentados das tardes de domingo ao som dos programas de auditório e do “tédio profundo” que povoa a imaginação insossa e patética da família tradicional brasileira saudosa dos tempos da ditadura militar. 

Propaganda nazista com os dizeres "Nosso objetivo, nossa vitória".

O fascismo tem várias faces, o bolsonarismo é apenas uma delas, mas a partir da análise dessas faces, podemos entender a sua gênese. Para começar, ele não se reduz a um evento ou a um fenômeno, ele também é uma ideologia[1], segundo a explicação culturalista, que compreende o fenômeno fascista através das particularidades alemães e italianas, o “mal nacional que se manifesta no fascismo (...) se traduz pelos vícios nascidos de séculos de governos despóticos”[2]. Outras teses buscam a construção do nazismo no espírito alemão, onde o luteranismo e sua configuração que reserva a liberdade à consciência individual e defende a submissão total a um poder exterior nortearia o espaço ideal para a proliferação das ideias nazistas, o nazismo teve um apoio maciço nas regiões protestantes e o misticismo protestante estimulou o povo alemão à adesão partidária dos arautos da morte: “à mística profana dos nazistas”[3]. Além do luteranismo, também haveria a influência do prussianismo: a uniformização e obediência cega às autoridades, “Bismark prepara Hitler ao inculcar o culto da razão do Estado”[4], ou o mito do romantismo organizado das duas Alemanhas, a do Nordeste, racional, uniformizada, prussiana, e a do Sudeste, fragmentada, particularista, romântica... “O nazismo teria germinado a partir desse dualismo fundamental, que ele integra em sua dinâmica”[5]. Adorno e Horkheimer identificam no nazismo a realização da razão instrumental moderna contra a racionalidade, Foucault identifica nele o auge da disciplinarização dos corpos e a materialização da biopolítica sobre a sociedade, onde o humano é tratado a partir de seus excessos orgânicos e do controle das doenças e disseminações epidêmicas, o nazismo teria unido essas normativas à hierarquização das raças defendida pela eugenia e a teoria da degeneração racial, e identificou o judeu como uma peste a ser eliminada da Europa. Para o filósofo Mbembe, o nazismo é uma necropolítica que teve sua origem nas plantations praticadas nas Américas:

O negro foi de fato um elemento central que permitiu a criação, por meio da plantation, de uma das formas mais eficazes de acumulação na época, acelerando a integração do capitalismo mercantil, da mecanização e do controle do trabalho subordinado. É por volta de 1630 e 1680 que se dá a bifurcação ou o nascimento das sociedades baseadas na plantation, uma instituição econômica, disciplinar e penal, onde o escravo negro e os servos brancos foram delimitados de forma clara e as pessoas de origem africana foram estigmatizadas pela sua cor. (Mbembe, A. Crítica da Razão Negra, pgs. 44 e 45)

Também há a explicação pelo totalitário, segundo Hanna Arendt, a política totalitária não substitui o sistema pluripartidário por uma ditadura de partido único, mas por um movimento de massas, e vemos isso hoje nas manifestações organizadas pelo bolsonarismo[6], ou seja, o totalitarismo substitui as classes pelas massas, “desloca o centro de poder do exército para a polícia e instaura uma política exterior que visa a dominação do mundo”[7], Carl J. Friederich caracteriza o totalitarismo como um regime de 5 (cinco) monopólios, como uma “destruição pentagonal da sociedade”[8], um regime que acumula sozinho o monopólio do partido único, da ideologia oficial do Estado, dos meios de comunicação, do sistema policial e militar. O totalitarismo se diferencia assim dos despotismos comuns, pois pressupõe um movimento de massas.


Propaganda nazista com os dizeres: "Doações para construir albergues e casas para os jovens". 

Pela explicação econômica: o fascismo é um efeito da nova fase do capitalismo, o imperialismo monopolista. Isto é, o capitalismo seria cúmplice no advento do fascismo ou o fascismo seria uma solução para o capital ameaçado. No caso do bolsonarismo, podemos ver essa configuração claramente, pois o mesmo implementa ou tenta implementar reformas de caráter neoliberal a partir da radicalidade das suas ações e dentro da lógica mais favorável possível ao sistema capitalista e os lobistas que o patrocinam. Para os marxistas, a insuficiência do mercado interno em determinado momento histórico da Europa, tornou indispensável, tanto para Itália quanto para a Alemanha, a conquista de novos escoadores para a produção, ou seja, anexar novos territórios (mercados externos) torna-se lei. “O nazismo corresponde às necessidades da infraestrutura do capital”[9], agentes do grande capital esgotado ou acuado pelos avanços sociais conquistados pelos trabalhadores. Mas o fascismo se apoiaria, principalmente, num movimento de massas da pequena burguesia[10], na famosa classe média em suas “marchas contra a corrupção, pela família e pela liberdade (de mercado)”, e sua originalidade está justamente na sublevação dos meios institucionais que edificam a democracia burguesa, ou seja, os fascismos aparecem a partir de uma crise de representação política, onde os partidos da ordem burguesa não são mais suficientes para dar conta das demandas sociais[11]. O próprio bolsonarismo cresceu e se consolidou a partir das manifestações, inicialmente hegemonizadas pela esquerda, em junho de 2013. Manifestações que tensionaram os limites da democracia representativa brasileira, uma “democracia” germinada numa sociedade neoescravocrata e altamente desigual, um país acometido por genocídios constantes, agora sequestrado pela encarnação do genocídio em “pele, osso e veneno”: Jair Bolsonaro e sua horda fascista.  


Manifestante bolsonarista na última mobilização pró-Bolsonaro ocorrida no dia 07 de setembro. 

Para a psicanálise, Hitler seria a caricatura do incapaz, a impotência do homem fascista que recorre aos símbolos fálicos para se afirmar. Reich compreende o fascismo como uma psicologia das massas sexualmente frustradas. O fascismo seria um movimento de massas justamente por “despertar em indivíduos altamente reprimidos, fantasmas do seu inconsciente, recalques”, o fascismo representa os impulsos secundários (crueldade, sadismo, etc.) e aproveita a brecha entre a vontade de liberdade e o medo da liberdade, uma liberdade vigiada, baseada na segurança máxima, neurótica ao extremo, na defesa da propriedade privada e na militarização da vida, para crescer socialmente e conquistar seus fiéis. Um retrato do bolsonarismo. Para Erich Fromm, a massa fascista satisfaz seu impulso sadomasoquista através da identificação com os poderes dominantes, e a classe média entrega-se com mais intensidade a esse projeto na medida em que sua frustração é mais viva: a perseguição ao judeu, ao homossexual, aos marginalizados, ao outro e a guerra colonial satisfazem seus impulsos sádicos[12]. O bolsonarismo mobiliza, em suma, pela psicose neurótica: o erro, o problema e a solução que deve ser alcançada está sempre vinculado à eliminação dos seus adversários, está sempre no fora, em algo inalcançável e delirante: no PT, o principal alvo do delírio bolsonarista, símbolo máximo da corrupção social para os seus adeptos, na mídia controlada pela “globalização comunista”, no STF dominado pela corrupção e pela “perversão sexual”, ou seja, o bolsonarismo se apoia no delírio psicótico como forma de interação com a realidade, e todos os seus adversários são expressões de uma conspiração global orquestrada para destruir os valores cristãos da família, a liberdade de mercado e a defesa da propriedade privada.

Bolsonaro é um fantoche das elites brasileiras que não tem um rosto ou preferem não mostrar seu rosto real nos processos históricos em que estamos mergulhados... num país que continua sendo um cassino para a especulação financeira e uma fazenda para os ruralistas. Bolsonaro é a morte e o bolsonarismo é o “veneno” que corrompe o tecido social, desmantela direitos políticos, intensifica o genocídio racial, e mesmo que Bolsonaro caia, o bolsonarismo ainda continuará vivo espalhando sua miséria, seu horror, seu ódio, mas resistiremos, enquanto houver ar e horizonte, resistiremos!

Vladimir L. Santafé é professor, cineasta, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pós-doutorando em Filosofia pela UERJ.



[1] Châtelet, F. História das Ideias Políticas.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] Idem.

[5] Châtelet apud Edmond Vermeil.

[6] Bolsonaro, mesmo em crescente queda de sua popularidade e fazendo um governo desastroso em vários setores da sociedade, ainda consegue mobilizar milhares de pessoas pelo país.

[7] Châtelet, F. História das Ideias Políticas.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] Mandel apud Châtelet.

[11] Nicos Poulantzas apud Châtelet.

[12] Horkheimer apud Châtelet.

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