Cinema Resiste

 

"Minha alma deseja a revolução e minhas mãos trabalham para a revolução. Porém o que é revolução? Uma revolução é a mudança total das leis naturais e sociais. Uma revolução só pode se realizar quando a morte vence a vida, porém ao mesmo tempo a morte é o nada e o nada é contra-revolucionário".

Glauber Rocha

 

O

Cinema Novo era um movimento de vanguarda, delimitado socialmente e esteticamente, dentro de um temporalidade de classe média, um segmento intermediário entre a burguesia e o proletariado (o povo), e como todo movimento de vanguarda, havia instantes de genialidade, inovação, rompimento com paradigmas conservadores do cinema clássico-narrativo ou comercial, dominado pela estética e pela narratividade hollywoodiana, mas também momentos de extremo elitismo e miopia em relação à situação real, isto é, econômica, política, cultural e antropológica do povo brasileiro. O cinema novo foi um tipo de resistência em sua época, assim como a nouvelle vauge na França ou o neorrealismo na Itália, uma resistência possível dentro dos desdobramentos e da conjuntura histórica em que se encontrava.

Atualmente, as vanguardas foram apropriadas pela publicidade, dentro do mercado long tail (cauda longa) que devora tudo, e é por isso, também, que tantos comerciais poderiam ser filmes experimentais e tantos filmes experimentais servem de base narrativa para os comercias. O experimental inspira o mercado de diversas maneiras. Mas a novidade, o rompimento, a ampliação perceptiva, a quebra “real” do sensório-motor, como escreveu Deleuze, isto é, para além do mercado, hoje se dá na distribuição horizontal das vozes e dos olhares que compõem a produção audiovisual... Como o movimento “Salve o Cine Guaraci” e os milhares de cineclubes e coletivos audiovisuais espalhados pelos recantos do país, dos centros aos subúrbios, como o antológico “Subúrbio em Transe”, a resistência real hoje se dá na pluralidade daqueles que percebem a realidade para além dos centros políticos e estéticos determinados pela metrópole. Os subúrbios e favelas produzem o novo, o realmente revolucionário.  

Os cineastas do cinema novo impunham suas verdades estéticas e políticas como se o único modelo possível para se vivenciar a experiência audiovisual tivesse que passar pelos seus “olhares e mentes visionárias”, mais refinadas, sensíveis e perceptivas àquilo que realmente interessa à consciência do proletariado para se emancipar em todos os sentidos, eles eram como os jesuítas no processo de catequização dos povos indígenas quando chegaram em Pindorama, terra que adquiriu o nome de uma commoditie da época, o pau-brasil. 

Mas a revolução hoje se dá fora da vanguarda, ela se dá nas redes que possibilitam a democratização do acesso às informações e à produção artística e cultural para além dos cânones  da “classe média esteta de si e dos outros”, da imposição de um modo de vida legitimado pela “alta cultura europeia”, o território par excellence das vanguardas. O próprio desenvolvimento e reconhecimento, inclusive da academia e de algumas vanguardas mais flexíveis, do pensamento decolonial ou pós-colonial vem para romper com esses paradigmas moldados pelos séculos XIX e XX, que perdem sua força com a massificação das informações e a distribuição rizomática, isto é, horizontal e democrática, das ferramentas e dos meios de produção que a internet possibilita para a criação audiovisual e sua disseminação/difusão pelas redes sociais. A aura da obra se difunde  em vários territórios, mas sem perder a sua força. A revolução hoje se dá a partir e dentro dessas redes de comunicação e insurgir contra o sistema não é mais um “privilégio da vanguarda”, seja ela artística ou política, mas sim uma obra coletiva e plural, decolonial e múltipla. Diversa em sua composição e produtiva a partir de sua multiplicidade, um movimento multitudinário, ao mesmo tempo organizado e ascentrado, coletivos e pessoas que se organizam em determinados momentos e situações, geralmente de forma autogerida e sem lideranças institucionais, ainda que os líderes e o partidos institucionais estejam sempre ao lado ou mesmo inseridos na dinâmica desses movimentos. Mas, mesmo quando se encontram no interior da multidão, eles não a controlam, e quando tentam gerir a sua dinâmica de forma hierarquizada e vertical, sua potência de transformação se perde ou é capturada pelos aparatos do poder (privado/mercadológico ou estatal; este último, no Brasil, é sempre ou na maioria das vezes, gerido por interesses privados ligados a grupos empresariais, milícias, etc.). Em suma, a potência multitudinária se dá no comum e a partir do comum, isto é, fora da vanguarda. 

E se a revolução se dá quando a morte vence a vida, como na premissa de Glauber, o que é a vida senão essa multiplicidade de afetos, rostos, linguagens, gírias, comportamentos, estilos que compõem os movimentos sociais e culturais, coletivos, cineclubes, para muito além do olhar autoritário e complacente dos “doutores” de todos os tipos e origens. Glauber compreende a revolução como um limiar, “a mudança total das leis naturais e sociais”, porque sua vida, seu corpo, sua mente, se davam por espasmos, se colocavam em transe...  Para o artista da época, a novidade, o novo estão sempre relacionados a um novo limite, um novo verbo, um novo olhar, uma nova imagem ou justo a imagem, como escreveu Godard. Um comportamento que lembra muito a dinâmica mercadológica no capitalismo, que está sempre em busca de novos produtos, incitando o consumo até o limite, desdobrando novos gostos, novas roupagens, dispositivos tecnológicos, formas de interação entre os sujeitos e os objetos que os rodeiam, o ser e o tempo, o espaço e as conjunções e conexões que o delimitam, assim como as relações de poder que o enformam. A vanguarda desloca o desejo interconectado pelo capitalismo através do valor de troca e sua “insaciabilidade” consumista para o “novo” na produção artística, para a ampliação perceptiva e a criação de novos olhares, para a quebra do sensório-motor ou senso comum narrativo e estético. Mas o cinema comercial e a publicidade já se apropriaram dessas inovações de linguagem, constantemente, a partir de capturas narrativas que tornam as experimentações vanguardistas digeríveis para o grande público ou consumíveis/vendáveis. Um consumo ad eternum, infinito, sem freio...

Faz parte do capitalismo quebrar o sensório-motor do consumidor e abrir novos campos de venda organizados num horizonte potencialmente infinito, dado que a long tail é insaciável e sempre descobre novos campos de atuação, novos paladares... A vanguarda provoca, cria as tensões ou as revela, o que a torna, de certa forma, dialeticamente indispensável para o mundo, pois sem a provocação, o tensionamento das relações e a mobilização de forças ainda não vistas ou percebidas, não nos movemos, permanecemos “intactos”, inamovíveis, conservados na doxa, no mais do mesmo... A vanguarda é essencial em diversos sentidos, tanto na arte quanto na política, mas como um fim, ela é retrógrada e elitista. Um paradoxo aparentemente sem solução que não deve ser solucionado, mas experimentado, isto é, é preciso manter acesa a chama da vanguarda sem ser vanguardista. Glauber fala de alma, “minha alma”, o que seria esta alma em relação às estruturas sociais e à estrutura simbólica que nos envolve? Porque a alma não está separada delas, ela não reside num “céu intangível e transcendente”. O que seria essa alma senão uma mistura de paixão e processos de racionalização “banhados” pela experiência. E o mais importante, por que “a revolução só pode se realizar quando a morte vence a vida”? Ou seja, a revolução pensada a partir da pulsão de morte encarnada na política e na arte. A revolução como o limite do limite, o limiar da vida, o sublime... Mas a revolução estética e política, como citada por Glauber, hoje encontra-se “abaixo”, abajo e a la izquierda, para além das “palavras de ordem”, para além do status quo do artista “degustado” pela grande mídia e pela inteligência metropolitana, a revolução encontra-se espalhada nos territórios e sua produção é incessante e urgente.        

Vladimir L. Santafé é professor, cineasta, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e pós-doutorando em Filosofia pela UERJ.

Uma pequena história do Cine Guaraci nas palavras de Rodrigo Bertamé[1]: “...localizado na Rua dos Topázios, 56, Rocha Miranda, subúrbio carioca, o cinema foi inaugurado em 1954 como a mais bela sala de cinema do estado, contando com decorações em art déco e art nouveau. Por mais de 30 anos, o cinema fez parte da vivência do bairro, inclusive ajudando a dar forma ao centro comercial da região, que se encontra todo ele ao redor do prédio. Após o encerramento das atividades do palácio cinematográfico, em 1989, o local contabiliza 32 anos de abandono, porém não sem lutas - as mobilizações de moradores já somaram mais de duas décadas. O Cine Guaraci foi tombado pelo Estado do Rio de Janeiro em 2003 no governo Rosinha Garotinho, através da lei nº 4156/2003; mas desde a aprovação de um projeto de lei de autoria do ex-deputado Pedro Fernandes (nº 2450/2005), o espaço foi parcialmente “destombado” pelo mesmo governo para fins comerciais em 2006 com a lei nº 4777/2006. Contudo, dois dias depois, foi novamente tombado pela prefeitura da cidade no mandato de César Maia com o decreto nº 26.644/2006. Agora, o histórico cinema de Rocha Miranda, por projeto de lei nº 138/2017 do vereador Jair da Mendes Gomes (PROS), promulgado na Câmara Municipal como a lei nº 6331/2018, após veto do executivo municipal, passou por um destombamento parcial do imóvel para fins comerciais, garantindo somente a manutenção da fachada. O “Movimento Cine Guaraci Vive”, integrado com os movimentos passados em defesa do Cine Guaraci, como a Associação de Amigos do Centro Cultural Cine Guaraci e o Movimento Pró Cine Guaraci, resgata a histórica luta em defesa do patrimônio de Rocha Miranda, possuindo, inclusive, projeto definido, o qual contém orçamento, sendo necessária apenas a atualização orçamentária”.






[1] Rodrigo Bertamé é arquiteto e suburbano.

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