Monumentos, história e resistência

Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade, “Os ombros suportam o mundo”.

N

o dia 24/07, durante as manifestações “Fora Bolsonaro” em todo o país, o coletivo “Revolução Periférica” realizou uma ação direta queimando a estátua do bandeirante Borba Gato em Santo Amaro, zona sul de São Paulo. Essa ação culminou na prisão do militante Paulo Galo, de sua companheira Géssica de Paula, que no momento do ato estava em casa cuidado de sua filha, além da prisão, também arbitrária, do militante Biu. Em recente artigo, o filósofo Vladimir Safatle escreveu, a partir de uma premissa de George Orwell (“quem controla o passado, controla o futuro”), que é preciso reelaborar o passado, caso contrário, iremos repetir os mesmos erros que constituem o nosso presente de forma sintomática, ou seja, o racismo estrutural, o machismo, o genocídio cotidiano que fundaram este país são sintomaticamente repetidos em gestos, políticas públicas, palavras e ações do nosso dia a dia. E sendo o futuro um prolongamento insuflado pelas imagens, atos e pensamentos elaborados no passado pelo presente, quem controla essas imagens e ações passadas controla o “mundo que nos rodeia”, controla a vida mesma.  

A ação direta promovida pelo coletivo Revolução Periférica reacendeu o debate de ideias em torno de que tipo de cidade estamos assentados ou que tipo de cidade queremos (desejamos) para o presente e para o futuro. Mas para isso, negar o passado ou não “pensá-lo”, reelaborando suas formas de edificação, é reforçar a sociedade atual – desigual e excludente. A esquerda institucional (ou tradicional) logo criminalizou o ato, indicando infiltrados em todos os lugares, a velha paranoia que inspira tantas teorias conspiratórias e, no fundo, mantém as coisas como estão. Ou seja, tudo aquilo que não pode ser controlado é denunciado como crime ou infiltração. Algumas vozes da própria esquerda acusam o grupo Revolução Periférica de “identitário” e antipovo, relacionando sua ação a um tipo de linha comunicacional que só “dialoga” com a militância e não com o povo enquanto corpo político palpável, mas é preciso nos debruçar sobre essa questão e nos perguntar se devemos sempre e em todos os momentos procurar o diálogo consensual ou, como foi o caso da ação direta promovida pelo coletivo Revolução Periférica, provocar o debate, incitar discussões, romper com os paradigmas estabelecidos pela “boa política” ou real politik e propor ou fabular algo que descodifique os códigos dominantes e nos mova para algo além do “mais do mesmo”, do senso comum, do consenso conservador que se estabeleceu em torno da política. É preciso romper com o cenário que domina o teatro representativo da democracia atual, um sistema fundado, principalmente, na defesa da propriedade privada dos meios de produção, na livre circulação de mercadorias e na ideia de equivaler a liberdade ao consumo, e reinventar uma democracia direta que atravesse o desejo das pessoas e dos coletivos dentro de um projeto político e econômico realmente justo e igualitário, um regime de partilhas baseado no comum.

A liberdade no sistema atual é expressa no consumo ou em produzir algo para o consumo de forma que esta produção não seja coagida por qualquer tipo de intervenção externa ou interna em sua produção. A ideia de liberdade no capitalismo, e isto inclui a política, está ligada, principalmente, à liberdade de vender e consumir, mas, no decorrer da história e dentro das resistências criadas pelas pessoas e pelos movimentos sociais que habitam a história, esta liberdade se ampliou para a gama de direitos civis, políticos e econômicos que vemos hoje em maior ou menor grau no mundo. No caso do capitalismo brasileiro, ela se faz a partir de um grau mínimo para a maioria da população ou praticamente nulo e máximo para a elite dominante do país, os empresários financistas, ruralista, milicianos e toda a corja que determina os rumos da política nacional. Isto é, a democracia brasileira é uma autocracia para oligarcas de vários tipos, do mercado de commodities ao mercado automobilístico ou de varejo praticado pela milícia, incluindo diversos serviços, do consumo de gás ao uso de TVs a cabo.

Vivemos numa democracia geográfica, como disse Safatle, uma democracia que se dá de forma efetiva em alguns territórios como na Zona Sul do Rio de Janeiro, mas não se dá nas favelas que compõem a paisagem da cidade ou nos subúrbios cariocas. Voltando à questão da política, a política hoje (e há muito tempo) é pautada pelo espetáculo e pela grana, não se pode ser um candidato vitorioso nas eleições sem que se invista muito dinheiro e status quo em sua própria pessoa enquanto candidato, ou seja, a política, de certa forma, tornou-se uma extensão das redes sociais, uma forma de promoção de si mesmo enquanto espetáculo consumível ou “já consumido”, dado que tudo que está nas redes é, desde o início, um produto consumido pelo desejo do outro e pelo seu próprio desejo. No governo Bolsonaro, é o desejo fascista pela destruição: “anteontem o Museu Nacional em chamas, ontem a Cinemateca Nacional, amanhã qualquer museu que se interponha à sua marcha destrutiva”, o bolsonarismo é uma “arquitetura da destruição”, como disse o professor João Cézar de Castro Rocha – o que confirma que a política bolsonarista, assim como a fascista e nazista, é uma política que promove uma “revolução cultural” conservadora, ou seja, ela é agressiva no campo da cultura e dos comportamentos, provoca, incita, estimula o embate, como foram os futuristas italianos no início do século XX, os futuristas defendiam a destruição dos museus a partir da criação de novos valores e formas inspirados no fascismo e, no plano econômico, o bolsonarismo flerta com o neoliberalismo mais agressivo em conjunto com a politicagem mais picareta e ilegal praticada pelas milícias e por corruptos de todos os tipos e lugares, vários naipes, formas e apelidos, dos corruptos que compõem os partidos tradicionais da política brasileira, do chamado Centrão aos partidos da extrema-direita, dos militares quartéis e aos batalhões policiais. O bolsonarismo é esta fusão canalha da cultura política autoritária, dos costumes conservadores (racistas, patriarcais, machistas, homofóbicos) consolidados e reativados constantemente pela classe média de maioria católica, mas também fortemente kardecista, com o conservadorismo religioso e comportamental dos neopentecostais, que reativam rituais e modos de percepção tradicionais do cristianismo evangélico e possuem um projeto de conquista institucional e micropolítica na sociedade em curso.

Mas e a ação direta do Revolução Periférica? Objeto do nosso artigo. Ela também envolve as chamas, mas no sentido inverso ao bolsonarismo, isto é, ela é uma ação que visa destruir e não conservar os símbolos da opressão que fundamentam o nosso país: a escravidão indígena e africana, o machismo mais cruel e violento (Borba Gato e todos os bandeirantes foram estupradores, era uma prática comum entre os colonizadores), a destruição das culturas originárias ou não europeias, em suma, a ação do Revolução Periférica confronta o bolsonarismo enquanto política e modo de vida. Uma estátua, um monumento, uma rua nunca se reduz à sua materialidade crua, eles são sempre um universal, uma relação de forças, um acontecimento, um conjunto de elementos conectados no tempo e no espaço histórica e simbolicamente, a estátua de Borba Gato encarna o horror que a maioria da nossa população vive em sua rotina e representa essa o racismo mais virulento e o massacre das populações indígenas, um massacre fomentado pelas políticas de segurança pública no país, nas periferias, favelas, quilombos e aldeamentos do Brasil. Por fim, gritamos com muitos e a partir de vários, #LiberdadeParaGalo #LutarNãoÉCrime. Fazer política é desde sempre ocupar espaços e tempos do qual somos impedidos ou coagidos a não ocupar. Mas também criar novos territórios e temporalidades ampliando a liberdade de ser e de estar na presença, vivos e presentes! Desnudar a vida em sua verdadeira face, potente e criativa, “a vida apenas, sem mistificação”.

Vladimir L. Santafé é professor e cineasta.

 


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