Anita Novinsky
Se no Juiz há ódio- por mais
justificada que seja a inocência
do réu -nunca a sentença do
juiz há de ser justa.
Padre Antônio Vieira,
"Memorial a favor da gente
da nação hebréia".
A frase acima expressa a opinião do padre Antônio Vieira sobre o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Escreveu-a no ano de 1674[1]. É uma opinião conseqüente de suas próprias experiências, como estudioso, como político, como réu e agudo observador, acumulada ainda de informações colhidas num longo convívio com os judeus. Residiu na Bahia desde 1624, e vivenciou na capital da colônia as inquietações da comunidade cristã-nova, quando o segundo Visitador da Inquisição, Marcos Teixeira, chegou ao Brasil em 1618. Presenciou a invasão dos holandeses de 1624 e sua expulsão em 1625, e encontrava-se ainda no Brasil quando os flamengos voltaram a atacar no ano de 1630, envolvendo-se ideologicamente no conflito político de Portugal com os hereges do norte da Europa. Enquanto esteve na Bahia, Vieira conviveu intimamente com os cristãos-novos, desde os mais ricos homens de negócios, datando daí a sua amizade com o rico mercador e financista do Rei D. João IV, Duarte da Silva, cristão-novo, que desempenhou, do ponto de vista financeiro, importante papel durante a luta com a Espanha pela restauração da casa de Bragança. Em 1641, o padre Vieira deixou o Brasil, tornando-se, em Portugal, diplomata e conselheiro do novo Rei. Seu convívio com os judeus portugueses, em diversas capitais européias, fê-lo entender a importância para seu país de uma aliança com os ricos mercadores e financistas cristãos-novos. Redigiu, no ano de 1643, uma "Proposta D. João IV na qual lhe expôs as medidas necessárias para tirar Portugal do desastre econômico em que se encontrava e garantir a sua conservação: convidar para voltar ao país os judeus homens de negócios, fugitivos da Inquisição, que se encontravam espalhados pelo mundo, isentá-los do pagamento do fisco, eliminar a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, admitir os casamentos mistos e ainda solicitar ao Papa um "perdão geral" aos "judaizantes"[2].
Durante os anos em que representou Portugal nas cortes européias, o padre Vieira teve a ocasião de encontrar, na Holanda e na França, portugueses judeus que se haviam expatriado, com os quais não só discutia assuntos políticos de comum interesse, como questões filosóficas e de religião. Sua "Proposta" sobre a abolição do confisco dos mercadores cristãos-novos que fossem presos pela Inquisição, e que culminou com a publicação de um Alvará no ano de 1649, é bastante conhecida. O que tem sido menos tratado é sua íntima ligação com os judeus, tanto fora como dentro do país, e que foi uma constante durante toda sua vida.
Desse convívio sofreu profunda influência, assim como também das Sagradas Escrituras e da leitura de obras proibidas pelo Index, muitas das quais foram encontradas em sua própria biblioteca. A influência da história e do pensamento judaicos aparece em muitos de seus escritos, assim como na Correspondência e nos Sermões. O ensaísta português Antônio Sérgio expressou-se bem: "seu Deus é bem mais do Velho Testamento do que o Deus da concepção peculiarmente cristã". Também o Sebastianismo, orientado para fins políticos, tão vigoroso em seu tempo, originou-se do convívio dos cristãos-velhos com os cristãos-novos, embebidos estes do ideal messiânico judaico, com o qual alimentavam seus de redenção. A idéia de um messianismo de tipo político, identificando o Messias com um redentor nacional, foi tomada pelo sapateiro de Trancoso dos judeus, e encontrou no padre Vieira um apaixonado defensor[3].
Se considerarmos o contexto da história política de Portugal na época da Restauração, compreenderemos as razões pelas quais as atitudes e a influência de Vieira na corte de D. João IV inquietaram os ministros do Santo Ofício, que perceberam, desde logo, o potencial inimigo que se escondia na personalidade do jesuíta. A prisão de Vieira pela Inquisição está ligada à sua mensagem política, à sua crítica social e aos seus escritos a favor dos cristãos-novos. No seu Processo é acusado de judaísmo, sacrilégio, blasfêmia e ainda de Ter defendido proposições impregnadas de erros judaicos. Vieira se retratou. Mas, mesmo depois de absolvido, não abandonou suas idéias milenaristas nem a defesa da causa dos judeus. Os Inquisidores mantiveram-se atentos, seguindo-lhe cuidadosamente os passos, quando em 1669 partiu para Roma. Vieira levava então um projeto corajoso: desmascarar a poderosa instituição da Igreja: o Santo Ofício.
Colocamos aqui uma questão: os discursos de Antônio Vieira, tanto os redigidos em Portugal no tempo do Rei D. João IV como os que elaborou durante os anos em que viveu em Roma, podem ser utilizados como fonte para uma melhor compreensão do fenômeno Inquisição e cristãos-novos? No que diz respeito ao marranismo, seus discursos fornecem-nos elementos que podem auxiliar na avaliação crítica da historiografia contemporânea, que se propõe a criar uma "Nova História da Inquisição"[4]?
Nas últimas décadas os estudos sobre a Inquisição espanhola intensificaram-se. Já foram publicados os resultados de simpósios, encontros, congressos, onde autores diversos procuram demonstrar que os tribunais da Inquisição agiam com relativa moderação, sentenciavam pouco à pena de morte, e eram benevolentes quando comparados com o tratamento dado às feiticeiras em outros países "cultos" da Europa[5]. Confrontando os escritos de Vieira sobre os judeus, a questão da justiça inquisitorial e o comportamento dos cristãos-novos em Portugal, e comparando-se a sua opinião com as teses publicadas sobre a Inquisição Espanhola e os conversos, podemos reconstruir a significação do Tribunal Ibérico para a história da barbárie da época moderna, como instrumento totalitário de aniquilação de toda dignidade humana e onde os judeus eram degradados publicamente, para regozijo das elites e o escárnio das massas.
Para alcançarmos a essência da mensagem subentendida nos discursos de Vieira, no que se refere ao Tribunal do Santo Ofício e ao fenômeno cristão-novo, lembramos que historiadores tradicionais divergem em sua opinião sobre a Inquisição e o marranismo[6]. J. Lúcio de Azevedo, C. Baroja, Israel Révah e outros não puseram em dúvida a veracidade e o conteúdo dos Processos, nem a honestidade do julgamento inquisitorial. A confissão de Judaísmo dos réus penitenciados pelo Tribunal não é questionada e os cristãos-novos são vistos como secretos praticantes da religião judaica, culpados, portanto do crime de que eram acusados. Punindo-os, a Igreja agia de acordo com sua lógica interna e seus princípios ideológicos, que seriam a preservação da fé católica.
O padre Antônio Vieira defende uma tese contrária e foi apoiando-se nela que A.J. Saraiva acusou a Inquisição de perseguir um mito: a maior parte dos portugueses cristãos-novos que foram penitenciados pelo Santo Ofício eram inocentes do crime de que eram acusados. Não podemos assim dar crédito às confissões contidas nos milhares de processos inquisitoriais. As regras e o funcionamento do Tribunal eram tais, que os réus não tinham outra saída a não ser assumir sua culpa. Garantiram-se assim os crimes e forjavam-se os criminosos.
Yossef Yerushalmi, em seu trabalho sobre Isaac Cardoso, concorda com a tese de I. Révah e da maioria dos autores judeus, apoiando-se no fato de que os registros inquisitoriais eram estritamente secretos para uso dos Inquisidores somente. Não crê que se possa rejeitar uma massa de documentos referente a três séculos. Apesar de possíveis distorções, o registro das confissões dos judaizantes não era um jogo instrumental. E chega à mesma conclusão de Révah, de que os réus condenados pela Inquisição eram judaizantes secretos, portanto culpados perante a Igreja[7]. Na polêmica travada entre o professor I. Révah e A.J. Saraiva, publicada na última edição de Inquisição e Cristão-Novos, aquele afirma que o que lhe interessava verdadeiramente, em toda a história, era saber de que maneira e até que ponto os arquivos da Inquisição podiam ser utilizados na reconstituição da história das suas vítimas. Critica a tese de Saraiva, por ter considerado os judaizantes um mito criado pela Inquisição e por não ter utilizado documentos do Santo Ofício, principalmente Processos[8]. Os exemplos e os argumentos de Vieira são uma resposta a essas contestações diversas, além de nos apresentarem um quadro que difere radicalmente daquele sugerido pela "Nova História da Inquisição".
Analisando os discursos de Vieira, principalmente a "Proposta", o "Memorial", e o "Desengano católico"[9], confrontamo-nos com a posição de um homem da Igreja, a desmascarar a própria "empresa" à qual pertence. Esta posição insere-se no universo de contradições barrocas no qual vivia e em cuja armadilha ele próprio caiu muitas vezes. Vieira atacou a Inquisição, mas atacando-a, conferiu também um golpe na própria instituição que o moldou. Não desfechou o golpe com subterfúgios, mas aberta e corajosamente: denunciou a desonestidade dos Inquisidores e a injustiça e arbitrariedade do julgamento: pois os juizes tinham ódio e a sentença não podia ser justa[10]. A injustiça e a discriminação apoiavam-se sobre uma ideologia racista construída há mais de meio século, por entidades laicas, e que forneceu à Igreja os fundamentos de que ela necessitava para sua "missão purificadora". Foi a discriminação étnica e não a religião judaica que sustentou o marranismo. Os marranos respondiam à exclusão a que eram relegados com uma nova representação do mundo, um mundo sem Deus. Mas foi também a discriminação étnica que forneceu à Igreja uma nova aram contra os judeus: todas ordens religiosas proibiam a entrada dos portugueses de "sangue infecto".
Vieira enfatizou em seus textos aqueles pontos que lhe pareciam aberrações da sociedade portuguesa, pelas quais responsabilizava em grande parte a Inquisição: o racismo, o confisco, o ódio incrustado na alma do povo, doutrinado com os sermões dos autos-de-fé. No que diz respeito ao Processo, acusou principalmente o "anonimato" das denúncias, e a ignorância do crime pelo réu. Encontrando-se em Roma e buscando o apoio do Papa, jogou com sua argúcia, afirmando e mostrando ao Sumo Pontífice que só teoricamente o Tribunal estava submetido à Santa Sé. Desmascarou a falta de proteção legal e de garantias dos prisioneiros, atirados num labirinto, onde tateavam às escuras, sem esperanças e sem retorno. (A "reconciliação" com a Igreja significava para os cristãos-novos "Cárcere e Hábito penitencial perpétuo").
Quando o padre Vieira em 1669 dirigiu-se a Roma, onde, apesar do vexame e das humilhações que sofreu em Portugal, foi recebido por amigos e companheiros da Companhia de Jesus, iniciou a mais corajosa luta jamais empreendida contra uma instituição da Igreja, o Santo Ofício.
O movimento anti-semita em Portugal nesse início da década de 70 tinha se intensificado, e apresentava as mesmas características que o anti-semitismo em todos os tempos. Mas um acontecimento local agravou a situação: Os cristãos-novos foram responsabilizados por um sacrilégio ocorrido em Odivelas, em 2 de junho de 1671. Como represália, um decreto real denominado "Lei do Extermínio", datado de 5 de setembro de 1673, determinou que todos portugueses cristãos-novos, confessos no crime de judaísmo, saíssem de Portugal com suas famílias, mas deixando seus filhos menores de 7 anos[11]. Os Inquisidores, que nunca aprovaram uma expulsão dos cristãos-novos, desta vez também manifestaram-se totalmente contrários ao decreto, que interferia diretamente nos seus interesses. Também não apoiavam o pedido de "Perdão" que os cristãos-novos, num último recurso, queriam dirigir ao Papa. Pronunciaram-se contra um documento elaborado pelos cristãos-novos denominado "Súplica dos Cristãos-Novos" o alto Clero, o Bispo de Leiria, o Bispo da Guarda e as Cortes. Indignados com a ousadia dos cristãos-novos, os Inquisidores advertiram o Rei sobre os perigos que tal perdão traria para a causa da fé cristã. Vieira não tinha outro caminho senão descarregar tudo sobre o Papa Clemente. Escreveu então ao Príncipe Regente D. Pedro, expondo-lhe as razões pelas quais todos os negócios, leis e estilos do Santo Ofício deviam ser entregues ao Sumo Pontífice, para serem por ele examinados. Em Roma, Vieira recebia continuamente notícias de Portugal, das intrigas e das mesquinhas alusões à sua pessoa. Desanimado, escreveu ao diplomata e magistrado Duarte Ribeiro de Macedo, a 10 de outubro de 1673, queixando-se do Rei D. Pedro que, intimidado, revogara as primeiras ordens que havia emitido sobre a causa dos cristãos-novos[12]. Essa atitude do Rei foi uma traição à classe burguesa e mercantil portuguesa, e Vieira o entendeu perfeitamente. Alguns dias depois, a 17 de outubro de 1673, escreveu novamente a Macedo, contando-lhe que os Inquisidores portugueses mandavam fazer em Roma grandes diligências, para que se pusesse silêncio às reivindicações dos cristãos-novos, enviando para isso "grandes somas de dinheiro que não devia ser de seus bolsos"[13]. Quase um mês mais tarde, a 14 de novembro de 1673, continuou seus desabafos, cada veja mais atemorizado com o que acontecia em sua terra natal, mostrando que os grandes perigos a temer eram o "segredo" e a imunidade em que se mantinha o Tribunal, e a religião, usada pelos poderosos como "pretexto"[14].
Data dos anos de 1669-1675 a vasta correspondência do padre Antônio Vieira com personalidades ilustres do Reino e também os dois escritos que concentram toda a indignação e revolta que o jesuíta sentia pelos mecanismos empregados pelos Inquisidores: "Desengano católico sobre a causa da gente da nação hebréia" e "Memorial a favor da gente da nação"[15]. No "Memorial", seu discurso versava sobre os conceitos de Justiça e de Verdade. E escreve: "o ódio da virtude faz pecado, da verdade faz mentira, castiga a inocência e livra a culpa"[16]. Acusava impiedosamente os Inquisidores de estarem errados, afirmando que a maioria do povo aprovava por ignorância os autos-de-fé e a ação do Tribunal. Pedia ao Regente que escutasse a minoria, pois o certo não estava com as maiorias, uma vez que estas não tinham razão crítica. A opinião comum chamava os cristãos-novos de "abominável", "escandalosa" e "perversa gente", quando a verdade era o contrário, pois nunca se soube de perversidade por parte dos judeus - mas sim dos Inquisidores, com seus autos-de-fé. É uma denúncia sem permeios, que nem um homem da Renascença, em Portugal ou fora, teve até então a coragem de fazer.
Vieira ergueu-se acima do seu tempo. Sua "modernidade" emergia em seu discurso como uma explosão contra o fanatismo de Portugal. Não poupou a ferocidade da língua: a distinção de cristãos-novos e cristãos-velhos é uma "lepra". E quando se dirigia ao Rei, dizia-o claramente: não pedia favor, mas justiça. O padre tinha consciência dos efeitos que causaram as idéias racistas de limpeza de sangue, que haviam criado barreiras intransponíveis na sociedade, dando origem a verdadeiros "parias" e "intocáveis".
Mas Vieira atirou-se mais longe ainda, para escândalo de seus contemporâneos, e no seu "Memorial" vai direto à apologia do sangue judeu: "Deus escolheu essa gente de nação hebréia para se aparentar, Deus fez nascer seu filho desse sangue. Os maiores Santos da Igreja, São João Batista, São Paulo, São Pedro, todos Apóstolos, a mãe de Deus e os discípulos de Cristo, todos foram da nação hebréia e não gentios"[17].
No "Desengano católico sobre a causa da gente da nação" retratou a covardia e o medo da sociedade portuguesa perante o Santo Ofício e a prepotência dos Inquisidores: "em Portugal, todos têm a boca fechada com mil temores a respeito da Inquisição, porque os inquisidores não dão ouvidos a nenhum requerimento ou proposta, e se fecham com a sua soberania e potência, sem admitirem alguma razão, nem de cristãos-velhos, nem de cristãos-novos"[18].
Depois das "Propostas" que apresentou ao monarca português no ano de 1643, para a "Mudança dos Estilos" do Tribunal da Inquisição, Vieira vai, 31 anos depois, em 1674, desmascarar pela base a farsa da instituição: os confessos revelam o que nunca fizeram, e quando negam o crime de que são acusados, morrem. Pediu ao Rei que examinasse todos os Processos, não um apenas, para verificar por si próprio que saíam em autos-de-fé indivíduos que não mereciam ser presos. Os réus que se confessam culpados, mentem para salvar a vida, pois os que se negam culpados são queimados. Os "diminutos", os que escondem cúmplices, acusam todos. A argúcia do padre Antônio Vieira vai fazer os cristãos-novos emergirem num outro quadro: mártires do próprio catolicismo e sujeitos a um Tribunal criminoso. Não temeu mostrar que a Inquisição "tinha poder e impunha autoridade", sem que isso lhe desse ciência. Fazia-se temida, mas os "Inquisidores não eram santos". O Tribunal é o lugar onde "os inocentes perecem e os culpados triunfam, porque esses na boca tem o remédio e no coração o veneno"[19].
Numa carta a Duarte Ribeiro de Macedo, datada de 29 de agosto de 1673, conta-lhe que Pedro Vieira da Silva, Bispo de Leiria, viera a Roma pedir socorro para a Inquisição[20]. Vieira estava indignado com as notícias que vinham do Reino, de que "Lisboa estava amotinada", e que "se queria vender a fé por dinheiro e crucificar Cristo de novo". Sabia que os "familiares do Santo Ofício enviados para Roma iriam se empenhar em reabilitar a Inquisição, e "pagar o negócio" em Roma, com toda sua fazenda. Mas corria outra notícia na cidade papal: que os cristãos-novos tinham mandado um certo Pedro Lupina Freira para reforçar sua causa.
E quem era Pedro Lupina Freire? Consta como sendo o autor de "Notícias recônditas do Modo de Proceder da Inquisição com os seus presos", que pensou-se durante muito tempo ser de autoria do "Haham" David Neto e ter sido publicado em Londres, em 1722[21]. Cogitou-se também que fosse de autoria do próprio Vieira, visto as idéias, os argumentos e as acusações do padre serem as mesmas apresentadas nas "Notícias". Cremos que a questão da autoria dessa denúncia contra a Inquisição ainda não está resolvida.
Pesquisando na John Carter Brown Library, em Providence, Rhode Island, encontrei uma obra raríssima intitulada "An Account of the Cruelties Exercise'd by the Inquisition in Portugal", editada em Londres em 1708[22]. No "Prefácio", diz o editor que o autor da obra é pessoa que pode dar a mais exata relação dos procedimentos e atos do Tribunal, contra aqueles que são acusados ou suspeitos de heresia, como também de seu tratamento nas prisões da dita Inquisição. Conta o autor que, depois de ter descoberto parte dos segredos e mistérios desse Tribunal, não pôde aguentar as bárbaras crueldades e injustos procedimentos usados contra os criminosos, e isso foi tanto contra seu coração, que ele resolveu deixar Portugal e se retirar para Roma, no ano de 1672. Por causa deste escrito, continua o editor, fechou-se o Tribunal em 1674, com "grande mortificação dos inquisidores". As "Notícias" correram então manuscritas, com grande número de cópias, e caíram nas mãos de personalidades ilustres da época. Diz ainda o autor que sabia não ser seguro voltar para Portugal, pois os Inquisidores o "sacrificariam para vingar-se", e resolveu acabar seus dias em Roma. Mas como havia mandado cópias desse manuscrito a várias partes da Europa, foi traduzido para outros idiomas e impresso, "para que o público soubesse os injustos procedimentos desse terrível Tribunal".
Esta "Relação", escrita em inglês, é uma tradução das "Notícias recônditas", apesar de não se tratar de uma versão exata. Sua existência prova que as "Notícias" não foram publicadas pela primeira vez em 1722 como pensou Hernani Cidade, mas em 1708 ou mesmo antes disso, já que deste ano data aquela sua tradução. Numa carta enviada de Roma para o padre Manuel Fernandes, em 9 de setembro de 1673, Vieira refere-se ao suposto autor das "Notícias" nos seguintes termos: "Aqui anda Pedro Lupina Freire, e dizem que foi mandado para este negócio [o de obter da Cúria a modificação dos estilos da Inquisição Portuguesa]. É homem terrível, e que pode servir ou danar muito para as notícias interiores da Inquisição. Como foi secretário dela tantos anos, pode dar muita luz; e por outra parte, por se congraçar com a mesma Inquisição pode unir-se com quem faz as suas partes, e parece capaz de tudo, principalmente sendo pobre, ainda que de alguns dias a esta parte começou a andar mais luzido."[23]
Se Vieira conhecia o texto das "Notícias recônditas", como afirmam alguns autores, e o retocou, por que apresentou seu autor de forma tão suspeita? Talvez um estudo do "Processo" de Lupina Freire, que ainda não foi feito, possa esclarecer problemas diversos relacionados com a questão da justiça inquisitorial, e também sobre a verdadeira autoria das "Notícias recônditas", que afinal traduzem fielmente o pensamento do padre Antônio Vieira. Em vista de seu escrito, Lupina Freire foi condenado pelo Tribunal da Inquisição a cinco anos de degredo no Brasil.
Em Roma, Vieira tomou atitudes decisivas, orientou os cristãos-novos, e mostrou-lhes como deviam apelar e pedir uma Súplica ao Papa, para conseguirem o "Perdão Geral"[24]. Recomendou-lhes que o "Requerimento", solicitando o Perdão, devia provar que o "estilo" do Tribunal levava a gravíssimas injustiças, a primeira e maior de todas: morrerem muitos inocentes. Advertiu-lhes ainda que todas as informações dirigidas ao Papa deviam vir muito bem documentadas, pois tratava-se da necessidade de "mudarem-se as leis de um Tribunal", já há muito estabelecido, que há tantos anos aplicava os mesmos métodos. A "Proposta" dos cristãos-novos devia vir em nome do Rei de Portugal, com uma carta do Núncio dirigida ao Papa, e também deviam ser mandadas certidões de Bispos e Prelados e pessoas que não quiseram ser ministros "por escrúpulo". (E Vieira diz que sabe que os havia.) Todos os papéis que iriam servir de prova sobre os injustos atos da Inquisição deviam vir jurídicas e justificadas pela Nunciatura. Vieira queria garantir de todos os lados o ataque ao Tribunal.
Toda a sua correspondência relacionada com a Inquisição tem um tom acusatório. A indignação perante o anti-semitismo desencadeado em Portugal, depois do famoso "desacato de Odivelas", levaram-no a bradar que os Inquisidores deviam ser "processados", "castigados" e "depostos" do ofício, como cismáticos e impedientes do recurso e obediência à Sé Apostólica. Reforça sua opinião de que os "estilos" do Tribunal deviam mudar, que devia haver outra forma de proceder, que devia diminuir-se-lhes a potência reduzindo os "familiares" e tirar-lhes a administração do dinheiro do Fisco. Vai ao extremo: "a causa já não é dos cristãos-novos senão da Fé e da Igreja".
Quando mais tarde escreve ao Papa Inocêncio XI, revela tudo: "querem ajudar um cristão-velho e fazem 200 cristãos-novos, e assim como na Casa da Moeda se cunha dinheiro assim neste miserável Reino somos oficinas de acumular judeus, se antes não corriam por tais, aqui lhes imprimem os cunhos e as cruzes para que de todo mundo sejam conhecidos: nova aritmética, que com a espécie de diminuir ensina a multiplicar"[25]. Quase um século mais tarde, D. Luis da Cunha, embaixador de Portugal na corte de Luis XIV, repete em seu "Testamento Político" a opinião de Vieira[26].
São numerosas as contradições e os paradoxos que encontramos na personalidade e nos discursos do padre Antônio Vieira. Expressou-as bem o historiador Robert Southey: "Few characters have ever interested me so much as this extraordinary man [...] That he was a profound statesman is apparent, and his liberality is shown by his conduct about the Jews, and how his genius, his wisdom and his liberality should have coexisted with his false taste, his catholic superstitions and his own individual madness is indeed most curious"[27]. Ao lado dos lances mais esclarecidos e críticos, entra com bajulações, que muitas vezes confundem a análise do historiador. Sua retórica barroca, seus argumentos muitas vezes diretos, outras vezes velados, ondulados, traduzem o universo enganoso no qual se movia. Chega às vezes até a admitir a existência do Tribunal, que diz "ser necessário" para a preservação da fé católica. Outras vezes abomina o fato de ser ainda tolerado, insinuando que a fé não passava de pretexto. Querendo chocar os retrógrados e fanáticos ministros chegou ao ponto de dizer que Portugal tinha de unir-se aos infiéis. Mostrou, com exemplos extraídos da História Sagrada, que príncipes amantes de Deus uniram-se aos infiéis e idólatras (Macabeus com os Romanos), Abrão com Abimelech etc) Sabemos que no século XVII milhares de hereges portugueses perambulavam pela Europa. Hereges do Catolicismo, hereges do Judaísmo, Vieira achava-os necessários em Portugal. Os judeus não prejudicariam o Catolicismo, e cita o exemplo do Papa, que não distinguia os cristãos-novos dos velhos, admitindo publicamente o Judaísmo na Santa Sé, enquanto Portugal não aceitava nem os que estavam batizados. Em Roma se consentiam Sinagogas, onde livremente se professava a lei de Moisés. Readmitir os cristãos-novos em Portugal seria obra de grande serviço de Deus e aumento da religião católica, pois o dinheiro dos judeus poderia servir para dilatar a fé de Cristo no mundo. E procurou encorajar o Rei de Portugal a "não ter medo" de mandar voltar os judeus, porque isso era "justiça".
Para os Inquisidores, ouvir que ingleses, holandeses e hereges podiam também salvar-se na sua fé "contanto que vivessem bem" soava o mesmo que uma traição ao Catolicismo e à pátria. O que queria dizer Vieira com os termos "vivessem bem"? Poucos o entenderam. O conflito mais feroz que havia se desenvolvido em Portugal entre cristãos-novos e cristãos-velhos foi o que girou em torno daidéia do Messias - o Messias já vindo e o Messias ainda esperado... Vieira procurou em seu Processo, ironicamente, fazer entender aos Inquisidores que não havia mal nenhum no fato de os cristãos-novos esperarem seu Messias, já que os portugueses esperavam D. Sebastião...[28]
Não obstante o lutador, Vieira foi um perdedor. Todo seu longo empenho de 32 anos para melhorar a situação dos judeus, de nada valeu. Perdeu em todas as frentes, junto ao Rei D. Pedro, junto ao Papa, junto ao Santo Ofício. Perdeu com seu "Papel Forte" sugerindo a entrega de Pernambuco aos holandeses, perdeu no empenho em trazer os cristãos-novos de volta a Portugal, perdeu na luta pela mudança dos estilos da Inquisição, perdeu no seu sonho messiânico esperando a redenção do mundo. Quando entramos no novo século, a Inquisição que havia reiniciado em 1681 suas atividades, com muito maior ferocidade do que antes de ter sido interrompida pelo Papa, continuou seus festivos autos-de-fé. Os cristãos-novos em Portugal sofreram na primeira metade do século XVIII a perseguição mais violenta, só comparável com a Inquisição espanhola no primeiro período de seu funcionamento.
Quem entendeu Vieira? O fim de sua vida e suas palavras bem o mostram: os juízos dos homens são mais para temer que os juízos de Deus[29]. E a sua idéia de Deus, em toda sua magnanimidade, em toda sua essência, está contida numa sugestiva passagem de seu discurso: "Melhor fora não haver na Misericórdia Igreja, que não houver hospital, porque a imagem de Cristo que está na Igreja é imagem morta, que não padece, as imagens de Cristo que são os pobres são imagens vivas que padecem. Se não houver outro modo, converta-se a Igreja em hospital que Cristo será mui contente"[30].
Vieira continua uma interrogação para os historiadores. Abriu para o mundo, com seu gênio, com seu discurso, o que se escondia atrás das regras do processo inquisitorial, mostrando que este levava automaticamente à condenação de inocentes.
Seu depoimento tem extraordinário valor documental, pois representa uma crítica à Inquisição, nascida dentro da própria Igreja. Vieira antecipou com seu humanismo crítico, pelo menos um século, o pensamento dos chamados "estrangeirados". Sua noção de pátria, povo, religião, podia coincidir com as diferenças, a negação, o heterogêneo. Sua intenção era outra? Futura conversão de todos os judeus, como querem alguns autores? Pode ser... O fato é que esse mesmo pensamento voltou à vida no século XVIII com D. Luis da Cunha, Antonio Nunes Ribeiro Sanches e com o próprio Marquês de Pombal. Mais ainda, com os prisioneiros da Inquisição, cristãos-novos ou cristãos-velhos, judaizantes ou não, que repetiam o nome do jesuíta na surdina. O padre Manoel Lopes de Carvalho, baiano, queimado pela Inquisição portuguesa em 1726, lembrava fielmente a frase de Vieira: "se não fosse a Inquisição não haveria tantos judeus"[31]. Mas foi numa carta ao Papa Inocêncio XI que Vieira descarregou toda sua descrença no catolicismo português: "não pode deixar Deus nosso Senhor de castigar essa presunção vã que os portugueses têm de puros na fé". E ironicamente termina: "tanto apuram a fé que se vai enterrando..."[32]A deterioração do catolicismo português, que Vieira presenciava, levou-o ainda à cruel denúncia, de que os índios já tinham aprendido e sabiam, desde o tempo em que o Ceará esteve dominado pelos holandeses, que "é muito mais suave o jugo dos hereges do que o de tais católicos"[33].
Com as corajosas acusações à hipocrisia dos Inquisidores e à corrupção de todo sistema inquisitorial, Vieira prestou um serviço à história e seu testemunho constitui uma preciosa fonte para o estudo do anti-semitismo e do despotismo religioso e político do Seiscentos português. Deixou-nos o mais convincente discurso sobre o "significado" da perseguição aos judeus e para a compreensão do anti-semitismo. O estudo de seus textos permite também uma análise comparativa com o Tribunal espanhol, e hoje, com as tendências da "Nova História da Inquisição", adquire ainda maior importância.
[1]"Memorial a favor da gente da nação hebréia sobre o recurso que intentava Ter em Roma, exposto ao sereníssimo Senhor Príncipe D. Pedro, regente deste Reino de Portugal", inVieira, Antônio Obras Escolhidas, Ed. Sá da Costa, Lisboa, 1951, Vol. IV, Obras Várias II, pp. 115-135.
[2]"Proposta feita a el Rei D. João IV em que se lhe representava o miserável estado do Reino e a necessidade que tinha de admitir judeus mercadores
[3]Sérgio, Antônio, "Interpretação Não Romântica do Sebastianismo", in Obras Completas Ensaios, tomo I, Ed. Clássicos Sá da Costa, 2a edição, Lisboa, pp. 239-271.
[4]Villanueva, Joaquim Perez, dir. Inquisicion Española, Nueva Vision, Nuevos Horizontes,ed. Siglo Veintiuno, Espanha, 1980.
[5]Alcalá, Angel. The Spanish Inquisition and the Inquisitional Mind. Columbia Univ. Press, Nova York, 1987. Introduction, p. 8, e Benassar, Bartholomé, L'Inquisition Espagnole, XVe-XIXe,ed. Hachette, Paris, 1979, Conclusion "Le Royaume de la Conformité", pp. 389-394. V. também Peter Edwards, Inquisition, University of California Press, 1989.
[6]Novinsky, Anita. Cristãos-novos na Bahia, ed. Perspectiva, S. Paulo, 1970. Veja cap. I, "Um problema de Historiografia".
[7]Yerushalmi, Y.H. From the Spanish Court to Italian Guetto. Isaac Cardoso -A Study in Seventeenth Century Marranism and Jewish Appologetics.Univ. of Washington Press, 1981, p. 24.
[8]Saraiva, Antônio José.Inquisição e Cristão-Novos. Ed. Imprensa Universitária, Ed. Estampa, Lisboa, 1985, pp. 213-291.
[9]"Proposta que se fez ao Sereníssimo Rei D. João IV a favor da gente da nação sobre a mudança nos estilos do Santo Ofício e do Fisco, em 1645", inVieira, A. Obras, op. cit.,pp. 27-71; "Memorial a favor da gente da nação hebréia", op. cit., pp. 115-135; "Desengano católico sobra a causa da gente da nação hebréia", op. cit., pp. 109-114.
[11]Kayserling, M. História dos Judeus em Portugal,Ed. Pioneira, S. Paulo, 1971, p. 274. Veja Apêndice VII, "Decreto de D. Pedro II", p. 306. Veja também "Consultas"sobre Odivelas, 49/IV/II - Biblioteca da Ajuda, Lisboa; e Manuscritos da Livraria,Códice 1509, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
[12]Cartas do Padre Antônio Vieira,Coordenadas e anotadas por J. Lucio de Azevedo. Imprensa Nacional, Lisboa, 1971, 3 tomos, vol. II, p. 643.
[21]"Notícias recônditas do Modo de Proceder da Inquisição com os seus presos", inVieira, A. Obras, op. cit.,Apêndice, pp. 139-244. A edição londrina de 1722 tinha o título "Notícias recônditas y pósthumas del procedimento de las Inquisições de España y Portugal con sus presos". Tinha suas partes, uma em português e outra em castelhano.
[24]Carta ao Pe. Manoel Fernandes, junho de 1673, in Cartas, op. cit.,vol. II, p. 591; Ver também Armario Jesuítico,Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, Ms.
[25]Carta do Pe. Antonio Vieira sobre a Causa do Santo Ofício escrita ao Santíssimo Pde. Innocencio XI.Biblioteca da Ajuda, Lisboa, 49/IV/23, p. 6 - 8v. Ms.
[26]"Testamento Político de D. Luis da Cunha, Ed. Alfa-Omega, S. Paulo, 1976, p. 76.
[27]Apud Dias, Maria Odilia Silva. O Fardo do Homem Branco -Southey, historiador do Brasil. Cia. Ed. Nacional, S. Paulo, 1974, pp. 151, nota 51.
[28]Vieira, Pe. Antonio. Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício, 2 tomos, Ed. Livraria Progresso, Bahia, 1957.
[29]Azevedo, J. Lucio. História de Antonio Vieira, tomo segundo, Ed. Livraria Clássica, Lisboa, 1931, p. 391.
[31]Processo do Padre Manoel Lopes de Carvalho, da Inquisição de Lisboa n. 9255, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ms.
[33]Vieira, Antonio. "Informação ao Conselho Ultramarino sobre as coisas do Maranhão" in Obras Escolhidas, op. cit.,vol. V, Obras Várias III, p. 325.
3 Comentários
obrigado pela informaçao
ResponderExcluirvaleu para um trabalho!!
muito obrigadito
ResponderExcluirAutora: Anita Novinsky
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